100 anos de militância a caminho do futuro

1921-2021

sábado, 21 de março de 2020

Vozes de hoje


Ler no Público 12 03 2020

Começo este texto com uma declaração de interesses:
o sonho não é devidamente valorizado.

Nos últimos anos, o sonho tem sido absorvido pela crença, pelo acreditar. Apesar de não muito distantes, estas duas realidades têm funções diferentes e acontecem por razões díspares. Já não se fala em sonhos. Se prestarmos atenção, ouvimos governantes a afirmar que acreditam ser possível isto e aquilo, mas nunca que têm o sonho de ver determinada coisa concretizada. O sonho é subvalorizado, talvez porque lhe seja atribuída uma conotação romântica ou bucólica, ou porque o assumimos como um elemento distante do mundo real.

Olhamos para o sonho como quem olha para as estrelas: num primeiro momento achamo-las distantes, inalcançáveis e inexplicáveis, mas depois percebemos que não. As estrelas estão ali, algures no universo, são reais, ou seja, o sol há muito que deixou de ser uma luz inexplicável para se tornar em algo concreto, que conhecemos e estudamos. Com o sonho, a realidade não é diferente, pode parecer que, por momentos, aquilo que sonhamos é uma abstracção do mundo material, uma idealização mágica de algo que não nos é possível alcançar. No entanto, esta descrição é mais justa ser feita à crença do que ao sonho, porque nunca vamos conseguir tocar na crença, racionalizá-la ou materializá-la.
 
“Álvaro Cunhal, referia-se ao sonho como 'a primeira manifestação de uma vontade de transformação social', na senda de um sonho relativo à sociedade. Ora, se o sonho é o ponto de partida para a transformação da vida, não nos podemos dar ao luxo de deixar de sonhar.”

Foi a partir do sonho que a humanidade foi traçando o seu caminho, desafiando probabilidades e obstáculos que só foram possíveis transpor porque sonhámos com o que poderíamos encontrar do outro lado, não nos tendo sobrado outra opção que não a de dar o salto em frente. No entanto, não somos muito encorajados a sonhar, não aprendemos desde novos que o sonho é a condição essencial à vida, mas somos ensinados desde o berço a abraçar a crença como o remédio para os nossos males. Na minha opinião, o sonho implica mudança.
Álvaro Cunhal, referia-se ao sonho como “a primeira manifestação de uma vontade de transformação social”, na senda de um sonho relativo à sociedade. Ora, se o sonho é o ponto de partida para a transformação da vida, não nos podemos dar ao luxo de deixar de sonhar.

Já aqui escrevi sobre o direito que temos ao tempo, mas não será menos importante dizer que temos o direito ao sonho. Não apenas ao sonho de algo possível, mas também do impossível, sonhar com o improvável, desafiando a ordem do mundo e das coisas. O sonho é a vida a estrebuchar dentro de nós, com a vontade de irromper pelo mundo e transformá-lo. Todos nós temos sonhos, o segredo deve estar na força com que os sentimos e a vontade que temos de os concretizar. Mas a vida não é coisa simples, os sonhos são condicionados pelas condições em que viemos, pelo nosso meio, a própria vida condiciona o sonho.



Sem comentários:

Enviar um comentário