100 anos de militância a caminho do futuro

1921-2021

segunda-feira, 29 de março de 2021

Fernando Domingues “um dos imprescindíveis”

 

Fernando Domingues (1956-2021)

«Um homem do campo que queria plantar ideias

Acreditou até ao fim que o mundo podia ser melhor. Achava que nunca se devia desistir de lutar pelo que se acreditava. Carismático, marcou Pombal pela sua actividade política. Morreu em Fevereiro com 65 anos.

Por Susana Moreira Marques

28 de Março de 2021, Público

Aqui há uns tempos, os dois irmãos tentaram plantar uma oliveira. Não correu bem. Mas fizeram logo o plano de voltar a tentar mais tarde. A oliveira seria de uma espécie que produz azeite não em quantidade, mas em qualidade. Um azeite para estar ao lado dos melhores azeites do mundo. Para ter marca registada. Um azeite para tornar a serra que amavam conhecida.

Iam ambos muito à serra. E quando iam sabiam sempre que não havia nada de natural numa natureza esventrada por uma pedreira, desfigurada por incêndios antigos, abandonada porque a gente que cuidava da terra ia morrendo.

Homem de estar sempre envolvido em muitas lutas, ultimamente era essa a luta que o ocupava. Presidente de uma associação de compartes que defende os baldios da região, acreditava que a Serra de Sicó podia voltar a ser um lugar onde a natureza era respeitada e a terra devolvida às pessoas que tinham ali raízes há muitos anos, às vezes séculos. Imaginava a serra novamente cheia das oliveiras que se davam ali. Imaginava um mel afamado. Imaginava a serra com rebanhos. E que ali se produziria queijo como já só os antigos se lembravam de comer.

Não era bem a serra da sua juventude, onde ia — com o irmão cinco anos mais novo — muitas vezes pastorear os animais dos pais. Mas era algo parecido. Só que era o futuro e as pessoas eram mais prósperas, talvez mais felizes.

Este foi, sem o saber, o último sonho que o deixou acordado até altas horas da noite. Leu regulamentos e leis. Estudou. Preparou um processo para contestar em tribunal o que lhe parecia ser uma enorme injustiça. Quando o processo finalmente avançou já não estava cá para ver.

Já não voltou a experimentar plantar oliveiras. Já não voltará a plantar ideias, que era a ocupação que tinha acabado por tomar conta da sua vida.

Fernando Domingues nasceu em 1956, em Pombal. Foi o filho mais velho. Foi o neto mais velho de uma mulher que viu o namorado partir para o Brasil para não voltar, criou a filha sozinha e, durante algum tempo, enquanto os pais estiveram em Lisboa, criou o neto.

Percebeu cedo que nem sempre era possível estar próximo da família. Para prosseguir com os estudos teve que sair de Pombal. E para entrar na universidade continuou distante.

Ainda não tinha acontecido uma revolução, ainda não tinha 18 anos, quando decidiu que era comunista. Nunca mudaria de ideias políticas.

Não terminou o curso de engenharia mecânica em Coimbra. O verdadeiro estudo dele seria a mecânica humana. Aprendeu a mobilizar pessoas. Aprendeu a explicar o que eram direitos.

Ensinou que a união fazia a força.

Foi funcionário do PCP. Foi professor. Foi operário, na indústria de moldes na Marinha Grande.

Fez, profissionalmente, muitas coisas diferentes, incluindo vender arte, até montar o negócio que lhe parecia mais convir, por questões de gosto e temperamento.

Tinha herdado provavelmente da mãe — que chegou a ser muito solicitada para cozinhar em casamentos na região — o gosto pela cozinha.

Há cerca de vinte anos que vendia produtos regionais. Queijos. Enchidos. Alguns vinhos. Tinha o paladar para isso. Tinha bom gosto. Gostava de conversar com os clientes. E, sobretudo, tinha paixão pela pequena agricultura e saberes tradicionais.

Mas foi a sua actividade das horas vagas que manteve inalterada ao longo da vida. Membro do Executivo da Direcção da Organização Regional de Leiria do PCP, responsável pela Organização Concelhia de Pombal, foi cabeça de lista à câmara de Pombal por duas vezes.

Nas últimas eleições autárquicas ficou desapontado com os resultados da CDU, mas talvez voltasse a tentar. Não era pessoa de desistir. “Ele deu muito dele à campanha e ficou um bocado desiludido, mas tinha sempre a perspectiva de que tinha sido um passo”, diz o irmão Jorge. “Vamos ao passo seguinte, dizia.”

Fernando Domingues só voltou para Pombal depois de se divorciar. Instalou-se na casa onde tinha crescido. Vivia com o irmão, que também estava divorciado. O filho vinha de Leiria, muitas vezes, aos fins-de-semana, para almoçar e passar tempo com o pai e o tio.

Era naquela casa que tinha espaço para a arca frigorífica que tinha andado muito tempo numa carrinha, sempre em movimento. Era de lá que geria o negócio e era para lá que ligavam ao Domingues a saber de um vinho ou um queijo. Era lá que tinha os seus quadros, as velharias de que gostava, e os livros. Era lá que tinha assentado para continuar a não parar.

“Era muito dinâmico”, diz Jorge Neves, um dos melhores amigos e camarada de partido. “Onde houvesse um problema, ele estava para ajudar.”

Jorge Neves ainda o viu, já depois de estar doente com covid-19, mas prefere lembrar-se dele da última vez que almoçaram juntos. Em Dezembro, foram a Cantanhede conhecer uma quinta onde se produz espumante. Comeram leitão. Ele estava bem-disposto como de costume. Como sempre, discutiram política. Conversaram sobre o rumo do mundo. Sobre a vida — que, ao fim ao cabo, também era falar de política, porque para ele tudo o que era humano era política.»