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segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Crónica do dia em que os homens se sentiram pássaros e pousaram nas árvores

Crónica do dia em que os homens
se sentiram pássaros e pousaram nas árvores

 

Armando Pereira da Silva
Jornalista

Toda esta crónica, ou toda esta revista, poderia ser uma glosa à volta da foto que, em reprodução da primeira página das edições do «Diário de Lisboa» de 26 de Abril de 1974, aqui deixamos. Acompanhava-a um pequeno texto debaixo do título: «Minuto zero: o 'regime’ vai cair».

O instantâneo fora obtido na tarde gloriosa da véspera, no Largo do Carmo, em Lisboa, poucos segundos antes da rendição do último ditador. Estes rostos tensos e decididos de milhares de pessoas, quase todas jovens, exprimem a fugacidade de um momento, de uma espera, de uma expectativa, de uma esperança que nunca iriam esquecer. O largo, as ruas, os carros dos soldados, as janelas e varandas vizinhas, tudo estava ocupado pelo sopro irrepetível da História em gestação.

E as árvores.

Aquele cenário propiciou a captação de belíssimos documentos fotográficos, como este. Mas talvez nenhum tão em cima do momento, nenhum com uma tal tensão transformadora. A foto – sem identificação do autor, o que é uma pena – caiu-me em cima da mesa de trabalho no meio de centenas delas, tiradas um pouco por toda a cidade e arredores, em todo o sítio onde houve movimentações militares ou/e populares. Mas aquela era, digamos assim, a foto, o «boneco»: o instante único, inclassificável, insondável, que separa quase imperceptivelmente duas realidades opostas, dois extremos inconciliáveis, dois modos não co-habitáveis de viver a vida. Depois de um dia dramaticamente intenso de acontecimentos, dúvidas e esperanças, avanços e recuos, a História definia-se com a presença vigorosa, testemunhal, interveniente do Povo.

O dia que a fotografia documenta era uma quinta-feira, 25, de um Abril datado de há trinta anos. Já não me lembro se estava sol ou chuva, calor ou frio. Estava lindo, de qualquer modo. Disso tenho a certeza. Começou cedo, também para mim, essa quinta-feira: ao princípio da madrugada alguém me acordou, finalmente, para a notícia que um país inteiro esperava. De caminho, passei pela casa do Rui Pacheco, repórter fotográfico e companheiro de muitas andanças, e pouco depois estávamos no Rádio Clube Português, já em fase de ocupação pelo Movimento das Forças Armadas, a meia centena de metros da redacção do «DL». Mal sabíamos que o RCP em breve mudaria de nome. Emissora da Liberdade se viria a chamar, por todo o tempo em que em Portugal se pensou que todos os sonhos eram possíveis. O RCP voltaria a mudar de nome, e de dono, mas nem tudo se perdeu. A liberdade resistiu.

Esta chamada às primeiras horas do dia 25 de Abril foi uma de muitas outras. Antes, durante e depois. Por exemplo: as lutas camponesas. Pelos baldios, nas serranias do Vouga, e dos meloeiros, na campina ribatejana. Um companheiro de jornada, o José João Louro, incitava-nos e incitava-se, em plena ditadura, a uma noção exemplar de jornalismo vivo: informar é estar atento a tudo o que se move. E juntos, ele e outros de nós, fomos descobrindo que no Portugal cinzento da opressão havia muita coisa a mover-se. Até os camponeses, que o Partido nunca abandonou. Por exemplo: o JJL, o António Bica e Carlos Carvalhas tiveram um papel notável no acompanhamento da luta das populações serranas pela recuperação dos baldios, a qual, das formas possíveis, também eu amplifiquei nos jornais onde trabalhava. Pouco antes de capitular perante os militares democratas do MFA, Marcelo Caetano teve de se vergar à exemplar e justa luta dos camponeses pelos baldios. Eram vários, e alguns muito e duramente trilhados, os caminhos que conduziram à libertação.

E depois. Depois da data mágica, as chamadas multiplicavam-se. De repente, o Povo que se movia constituiu um rio torrencial. O povo que, na foto do Largo do Carmo, estava em vias de explodir no grito da sua vitória.

De repente, as pessoas acreditaram: a vida tem dias assim. De pura e absoluta felicidade. Manuel de Azevedo, meu veterano camarada de profissão, costumava contar as horas, primeiro, e os dias depois de Abril, os dias de liberdade finalmente vivida, proclamando: «Este(s) já ninguém nos tira». Talvez esta foto o tenha inspirado: o mesmo dirão ainda hoje os que, naquele minuto histórico, ali viveram o primeiro dia da sua vida verdadeira. Eram quase todos jovens, aqueles rostos. Muitos deles terão sido traídos nas suas esperanças legítimas, ter-se-ão sentido enganados, ou terão resistido à erosão do tempo e dos comportamentos, terão sabido identificar o importante e o supérfluo, não deixaram de sonhar e acreditar. Talvez se sintam hoje revoltados quando ouvem alguns idiotas reinantes chamar-lhes velhos por serem dos que lutaram contra a opressão que os ditos desconhecem – porque nasceram ou foram criados e educados em liberdade, a liberdade que os tais «velhos» lhes deixaram por herança.

Ao rever esta fotografia, recordo o poeta: «Os pássaros nascem na ponta das árvores/As árvores que eu vejo em vez de frutos dão pássaros», escreveu Ruy Belo, talvez por essa altura. Aqui, as árvores são vida, como sempre. Mas os pássaros são homens. Aquele foi o dia em que os homens se sentiram pássaros e pousaram nas árvores.

O dia estranho e glorioso em que acordei com um golpe de Estado e me deitei com uma Revolução. E pássaro me senti.

«O Militante» - N.º 269 Março/Abril de 2004

 


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