Opinião
Confinamento social,
confinamento político: realidades a não confundir
No próximo dia 25 de Abril vou
quebrar o confinamento social em que me encontro desde 18 de Março para estar
presente na Assembleia da República por uma questão de dever, por respeito pela
memória de tantas vidas sacrificadas, mas também porque é preciso dizer aos
saudosistas do passado que não passarão.
Público 25 de Abril de 2020
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notícia
O “confinamento social” repentina e
inesperadamente passou a marcar o modo do viver quotidiano de grande número de
portugueses e consequentemente motivo de notícias, de debates, de diversas
análises. O “confinamento social”, ainda que a palavra social definidora da
natureza do confinamento seja não poucas vezes suprimida, ocupa tal dimensão
que parece ter-se tornado o grande problema do país e o maior dos dramas dos
cidadãos.
Não
se subestimam as perturbações que a situação provoca a vários níveis na vida,
em particular nos idosos há muito confinados pela vida difícil e as políticas
de estigmatização da própria velhice. De qualquer modo, convirá não esquecer
que não há confinamento em geral, que os seus efeitos são diferenciados
conforme a origem social que determina a qualidade das habitações e até a sua
ausência, os equipamentos de lazer e de acesso à informação, isto é, a sua
ligação à vida e ao mundo.
Para os que nasceram depois do 25 de
Abril, para quem a liberdade é tão natural como respirar, a situação de
confinamento social é uma grilheta dolorosa, mas qualquer semelhança com o
confinamento e isolamento a que foram sujeitos dezenas de milhares de
antifascistas presos é um absurdo, quer no plano do quotidiano quer no plano
humano, desde logo porque os objectivos policiais eram abalar as convicções dos
presos, a sua destruição.
Uso as palavras confinamento e
isolamento porque, embora inseparáveis, as suas consequências eram diversas. As
prisões eram espaços confinados mas eram-no muito mais o espaço, por vezes
minúsculo, em que viviam os presos, além da quase ausência de equipamentos, da
privação de acesso à informação e da permanente devassa da vida pessoal e até
afectiva.
Dos cerca de onze anos passados nas cadeias
do Aljube, Caxias e Peniche, nove desses anos passei-os em Peniche em
regime celular de isolamento de mais de vinte horas diárias, num espaço de dois
por três metros com uma janelas de vidros foscos, onde obviamente não havia
televisão nem telemóvel e não poucas vezes se era privado de livros e jornais,
e em que as refeições, momento de encontro dos presos do mesmo piso, decorriam
em rigoroso silêncio, e o viver do dia-a-dia, segundo as normas, era a sua
sujeição a vigilância constante. A isto, os carcereiros chamavam de regime
normal que se se seguia ao período
de interrogatórios e isolamento total, forma de tortura complementar das
torturas físicas, uma forma de tortura, para muitos presos, a mais brutal e
destruidora forma de tortura pelos efeitos no estado psíquico.
Cada preso teve a sua experiência
própria e enfrentou essa realidade de modo diferenciado. Os períodos de
isolamento total, no meu caso, resumem-se a cinco meses nos “curros” do Aljube,
um mês numa cela de Caxias e outro
mês numa cela de Peniche, e dez dias no segredo de Caxias. Nenhuma das
experiências foi igual. Falar dos meses nos “curros” do Aljube é falar de se
estar num buraco de cerca de um metro por dois, sem mobilidade, na obscuridade,
sem meios de escrita ou de leitura, sem relógio, sem visitas ou conhecimento do
que passa no exterior e de perda da própria noção do escoar do tempo. Não era
pouco perturbante o estar-se à espera de se ir para os interrogatórios ou
regressar num estado lastimoso para sarar feridas em condições de isolamento.
Quando refiro as três experiências
diferentes é porque não havia isolamento em geral. É que estar isolado sem
escrita, sem livros, sem visitas, em celas com luz, sobretudo quando se passava
pelo segredo de Caxias, as celas transformavam-se quase num paraíso. O segredo
era um buraco subterrâneo, sem qualquer réstia de luz, com um minúsculo
respirador, sem cama, onde não chegavam sons e as movimentações se faziam às
apalpadelas. A sensação era de que se tinha sido enterrado vivo. E no entanto,
porque era proibido cantar, era preciso desafiar a prepotência dos carcereiros
cantando.
No peso do isolamento não era
indiferente a idade e a vida familiar, sobretudo quando
se era preso com a companheira e nada se sabia do que se está a passar com o
outro. No meu caso, a minha companheira só soube que também estava preso
dois meses e meio depois. Vencer o isolamento exigia uma grande mobilização de
energias, recriar mentalmente a vida exterior, pensar que lá fora a luta
continuava e era preciso mostrar que a firmeza das convicções era superior à
violência policial.
O isolamento, as torturas não eram só sofrimento. Eram
uma luta para vencer a polícia, uma afirmação de dignidade, de confiança nos
ideais. A derrota da polícia igualmente uma fonte de alegria e de bem-estar
espiritual.
O 25 de Abril pôs fim a estes tempos negros. No
próximo dia 25 de Abril vou quebrar o confinamento social em que me encontro
desde 18 de Março para estar
presente na Assembleia da República por uma questão de dever, por respeito
pela memória de tantas vidas sacrificadas, mas também porque é preciso dizer
aos saudosistas do passado que não passarão.
Obrigado, camarada Domingos (e camarada Cid). Não se façam confusões!
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