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domingo, 26 de abril de 2020

O outro confinamento


Opinião
Confinamento social, confinamento político: realidades a não confundir

No próximo dia 25 de Abril vou quebrar o confinamento social em que me encontro desde 18 de Março para estar presente na Assembleia da República por uma questão de dever, por respeito pela memória de tantas vidas sacrificadas, mas também porque é preciso dizer aos saudosistas do passado que não passarão.

Público 25 de Abril de 2020
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O “confinamento social” repentina e inesperadamente passou a marcar o modo do viver quotidiano de grande número de portugueses e consequentemente motivo de notícias, de debates, de diversas análises. O “confinamento social”, ainda que a palavra social definidora da natureza do confinamento seja não poucas vezes suprimida, ocupa tal dimensão que parece ter-se tornado o grande problema do país e o maior dos dramas dos cidadãos.
Não se subestimam as perturbações que a situação provoca a vários níveis na vida, em particular nos idosos há muito confinados pela vida difícil e as políticas de estigmatização da própria velhice. De qualquer modo, convirá não esquecer que não há confinamento em geral, que os seus efeitos são diferenciados conforme a origem social que determina a qualidade das habitações e até a sua ausência, os equipamentos de lazer e de acesso à informação, isto é, a sua ligação à vida e ao mundo.
Para os que nasceram depois do 25 de Abril, para quem a liberdade é tão natural como respirar, a situação de confinamento social é uma grilheta dolorosa, mas qualquer semelhança com o confinamento e isolamento a que foram sujeitos dezenas de milhares de antifascistas presos é um absurdo, quer no plano do quotidiano quer no plano humano, desde logo porque os objectivos policiais eram abalar as convicções dos presos, a sua destruição.
Uso as palavras confinamento e isolamento porque, embora inseparáveis, as suas consequências eram diversas. As prisões eram espaços confinados mas eram-no muito mais o espaço, por vezes minúsculo, em que viviam os presos, além da quase ausência de equipamentos, da privação de acesso à informação e da permanente devassa da vida pessoal e até afectiva.
Dos cerca de onze anos passados nas cadeias do Aljube, Caxias e Peniche, nove desses anos passei-os em Peniche em regime celular de isolamento de mais de vinte horas diárias, num espaço de dois por três metros com uma janelas de vidros foscos, onde obviamente não havia televisão nem telemóvel e não poucas vezes se era privado de livros e jornais, e em que as refeições, momento de encontro dos presos do mesmo piso, decorriam em rigoroso silêncio, e o viver do dia-a-dia, segundo as normas, era a sua sujeição a vigilância constante. A isto, os carcereiros chamavam de regime normal que se se seguia ao período de interrogatórios e isolamento total, forma de tortura complementar das torturas físicas, uma forma de tortura, para muitos presos, a mais brutal e destruidora forma de tortura pelos efeitos no estado psíquico.
Cada preso teve a sua experiência própria e enfrentou essa realidade de modo diferenciado. Os períodos de isolamento total, no meu caso, resumem-se a cinco meses nos “curros” do Aljube, um mês numa cela de Caxias e outro mês numa cela de Peniche, e dez dias no segredo de Caxias. Nenhuma das experiências foi igual. Falar dos meses nos “curros” do Aljube é falar de se estar num buraco de cerca de um metro por dois, sem mobilidade, na obscuridade, sem meios de escrita ou de leitura, sem relógio, sem visitas ou conhecimento do que passa no exterior e de perda da própria noção do escoar do tempo. Não era pouco perturbante o estar-se à espera de se ir para os interrogatórios ou regressar num estado lastimoso para sarar feridas em condições de isolamento.
Quando refiro as três experiências diferentes é porque não havia isolamento em geral. É que estar isolado sem escrita, sem livros, sem visitas, em celas com luz, sobretudo quando se passava pelo segredo de Caxias, as celas transformavam-se quase num paraíso. O segredo era um buraco subterrâneo, sem qualquer réstia de luz, com um minúsculo respirador, sem cama, onde não chegavam sons e as movimentações se faziam às apalpadelas. A sensação era de que se tinha sido enterrado vivo. E no entanto, porque era proibido cantar, era preciso desafiar a prepotência dos carcereiros cantando.
No peso do isolamento não era indiferente a idade e a vida familiar, sobretudo quando se era preso com a companheira e nada se sabia do que se está a passar com o outro. No meu caso, a minha companheira só soube que também estava preso dois meses e meio depois. Vencer o isolamento exigia uma grande mobilização de energias, recriar mentalmente a vida exterior, pensar que lá fora a luta continuava e era preciso mostrar que a firmeza das convicções era superior à violência policial.
O isolamento, as torturas não eram só sofrimento. Eram uma luta para vencer a polícia, uma afirmação de dignidade, de confiança nos ideais. A derrota da polícia igualmente uma fonte de alegria e de bem-estar espiritual.
O 25 de Abril pôs fim a estes tempos negros. No próximo dia 25 de Abril vou quebrar o confinamento social em que me encontro desde 18 de Março para estar presente na Assembleia da República por uma questão de dever, por respeito pela memória de tantas vidas sacrificadas, mas também porque é preciso dizer aos saudosistas do passado que não passarão.

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