Militante
exemplar do PCP
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aqui: Mário
Sacramento aqui
Esta carta foi deixada por Mário Sacramento
em envelope fechado com a indicação «Para ser aberto quando eu morrer» e
assinado o envelope com a indicação «Escrito em 7-4-1967»
Caramulo,
Pousada de S. Lourenço,
7 de Abril de 1967
Aos mais adiados...
Vai sendo tempo de escrever uma carta de despedida! A
velha carcaça é já uma ruína nítida. A somar às cicatrizes das lesões
pulmonares que tive, há bronquiectasias e zonas de enfisema do impossível
fumador que sou, as quais hão-de vir a resultar num coração pulmonar. A tensão
mínima já começa a ressentir-se disso. O rim deita vestígios acentuados de
albumina e cilindros. E o estômago tem qualquer coisa que um destes dias hei-de
averiguar... Como não posso nem devo emagrecer excessivamente — são os próprios
colegas que mo dizem —, dado o perigo de reactivação das antigas lesões
bacilares, o peso é também um contra. E, como deixar de fumar, nesta idade,
além de ser um sacrifício inglório que me roubaria um dos poucos apegos
concretos que ainda tenho à vida, seria levar-me a engordar ainda mais, o
balanço é portanto muito nítido. Quantos anos? Depois dos cinquenta acaba-se,
estou convencido. Mais erro, menos erro, a média deve ser essa.
Começo por isso a ter pressa de fazer umas tantas
coisas que reservei para a fase final, quando a terrível batalha que travei na
sobrevivência contra o fascismo me deixasse, à margem desta profissão cujas
dificuldades e condicionamentos económicas, sociais e políticos liquidaram
tantos dos meus sonhos, margem para isso. Espero roubar, sempre que possa,
alguns dias à labuta e à engrenagem diária e isolar-me, como agora fiz, para
escrever qualquer coisa de mais íntimo. Para o romance cíclico que trago há
tantos anos na cabeça, não chegará o tempo, decerto. E é melhor assim, pois
evito uma desilusão e sempre morrerei com o arzinho angustiado de vítima dum
mau destino, o que é chique, como diria o Eça...
Antes de tudo, impõe-se, porém, que escreva estas
singelas palavras. Quem pode afiançar-me que não vou acabar hemiplégico e
afásico, como minha Mãe? Deixa aqui, então, o que depois não poderás!
Deixar cheira a testamento. E eu, que deixe, só tenho
o corpo. Por mais que fizesse, por mais que me fizessem, disso é que nunca
consegui ser espoliado! E, como é com ele que me avenho nas noites de insónia e
nas porfias diárias, é justo que lhe dedique, ao menos, um pensamento em vida.
E não o legue aos cães... Pois não equivaleria a isso estar a ver-me, daqui, de
barba feita a posteriori, sapatos engraxados, fato de ver a Deus, a apresentar
as minhas despedidas, muito formalizado, de dentro da cabine - especial? Como
não tenciono ir para parte nenhuma, metam-me como eu estiver no caixote mais
barato que encontrem e devolvam-me os restos à terra. A terra sabe lavar-se. E
não há nada como um cadáver «limpo» para marcar um limite.
Se morresse em localidade com forno crematório, não
desgostava disso, se não fosse caro. E, por falar em caro: não sei se a terra
será o mais barato para o caso, - ó contradições do capitalismo! E, como isto
de morrer também «custa» aos outros, há que prevê-lo. A família tem uma
pirâmide egípcia em Ílhavo. Embora eu esteja farto de conhecer prisões em vida,
como nessa altura quem terá de aguentar isso é «o outro», não me oponho a ir
para lá, se for mais económico ou mais fácil de arrumar. Não faço questões
nenhumas com a morte... Ela nega-me, e é tudo. A grande magana!
Não, o motivo fundamental desta carta é outro. Aceitei
dialogar, nestes últimos tempos, com os católicos. Se tivesse nascido num país
protestante ou árabe ou budista, tê-lo-ia feito com esses. Pois do que se
tratava — se trata, ó morto-vivo!, ainda não acabaste! — era, é de dialogar com
os progressistas e, sobretudo, com o povo, directa ou indirectamente. Não há-de
faltar contudo — sempre assim foi, ó alminhas santas! — quem procure fazer
sujeira com isso e aproveitar-se duma ambiguidade que surja para me denegrir a
memória. Se a minha Mulher ainda estiver viva — ela tem sido boa companheira!
Não haverá problemas com isso, estou convencido. E o mesmo se dará se os filhos
estiverem atentos: eles têm carácter. Mas quem pode prever tudo? Não que eu
faça grande questão do meu bom nome: estou-me nas tintas para ele, depois de
morto. Mas, além dele pertencer aos meus companheiros de jornada. E, que diabo,
se passei tantos maus bocados por eles, em vida, é porque considerei que era
esse o meu destino. E um homem tem o direito de o defender, mesmo depois de
morto!
Fica portanto entendido que sou ateu e como ateu devo
ser enterrado. Em vez dum pano preto, ponham um paninho vermelho no caixote, se
puderem. E usem luto vermelho, se algum quiserem usar...
Mesmo que eu ficasse pílulas ou sugestionável à hora
da morte, isso não modificaria ser esta a minha opinião responsável. É esta,
por conseguinte, a única válida.
Claro está que gostaria de ter sido melhor homem,
melhor marido e melhor pai. A perspectiva da morte só tem de positivo fazer-nos
pensar assim. Mas o homem é um bicho complicado. E eu tenho a consciência de
que pelo menos, me bati sempre comigo mesmo para ser melhor do que poderia ter
sido. Fui amigo da família à minha maneira: sem efusões líricas ou
rodriguinhos. E, se não fiz mais por ela, foi porque não pude, tanto no sentido
social como psicológico do verbo. A prova de que o meu desejo era ser bom
marido e bom pai está no muito que li, pensei e escrevi sobre isso. Sejam os
Filhos melhores do que eu pude — foi sempre esse o meu sentido de missão.
Nasci e vivi num mundo de inferno. Há dezenas de anos
que sofro, na minha carne e no meu espírito, o fascismo. Recebi dele
perseguições de toda a ordem — físicas, económicas, profissionais,
intelectuais, morais.
Mas, que não as tivesse sofrido, o meu dever era
combatê-lo. O fascismo é o fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como
um gangster encurralado. Fiz o que pude para me libertar, e aos outros, dele. É
essa a única herança que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem
a obra! Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antes! Instaurem uma
sociedade humana! Promovam o socialismo, mas promovam-no cientificamente, sem
dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses! Aprendam com os
erros do passado. E lembrem-se de que nós, os mortos, iremos, nisso, ao vosso
lado!
Não veremos o que quisemos, mas quisemos o que vimos.
E este querer é um imperativo histórico. Há milhões de mortos a dizer-vos:
avante!
Para a Mulher, um abraço, simples e esquivo como eu
sempre fui. Para os Filhos, um beijo, frio e recalcado como eu sempre lhes dei.
Para todos, um afecto. Quem tinha tão pouco que dar a tantos, teve de ser
avaro... Mas morre convencido de que não guardou nada para si. Ou de que teve,
pelo menos, essa intenção.
Façam o mundo melhor, ouviram?
Não me obriguem a voltar cá!
Mário
Sacramento
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