GASPAR BARREIRA (1940 – 2019)
Antifascista, militou desde jovem na
oposição à Ditadura e foi alvo da maior perseguição e repressão. Torturado pela
PIDE, esteve preso durante seis anos, em Caxias e na Fortaleza de Peniche.
Cientista de elevado prestígio, antes e depois do 25 de Abril de 1974
destacou-se na construção de um país onde o Conhecimento, a Liberdade e a
Racionalidade fossem determinantes.
1. Gaspar Pereira de Morais Barreira
nasceu em Braga a 4 de Maio de 1940, filho de Almerinda Alves Pereira e de
Félix Barreira. Viveu até depois do 25 de Abril com o nome de Gaspar Ferreira
[em consequência de uma lei que obrigava a que os filhos fossem registados com
o nome do marido da mãe, mesmo que o casal vivesse separado]. Filho ilegítimo,
foi perfilhado em testamento pelo pai biológico, com quem cresceu, e com quem
tinha uma relação próxima. No meio familiar recebeu, nas suas palavras, uma
"formação liberal". O seu pai, Félix de Morais Barreira, pertencia à
administração pública. Terminou precocemente a carreira em 1945, como
secretário-geral do governo civil do Funchal, por se ter recusado a cumprir a
ordem de Salazar de hastear a bandeira em sinal de luto pela morte de Hitler.
Este episódio, segundo Gaspar Barreira (GB), marcou-o para sempre.
No ano lectivo de 1957/58, GB veio
para Lisboa estudar engenharia no Instituto Superior Técnico, e cedo despertou
para a militância política. O primeiro ano foi vivido no rescaldo da grande
luta estudantil do ano anterior contra o «decreto-Lei 40 900» [que cerceava os
direitos das associações de estudantes]. Associou-se muito cedo à candidatura
do general Humberto Delgado à presidência da república, nas eleições de 1958.
Tornou-se membro do Partido Comunista Português em 1959, desenvolvendo actividade
no sector intelectual. Passou à clandestinidade, como funcionário do PCP, no
segundo semestre de 1963, um corte radical e difícil com uma vida normal. Foi
destacado para seguir um curso na Checoslováquia e depois na URSS. Deixou
Portugal logo após o nascimento do filho, e esteve no estrangeiro durante 15
meses. No dia 14 de Maio de 1966, GB foi preso pela PIDE numa rua de Lisboa,
quando regressava a casa (clandestina), depois de uma reunião em casa de um
operário da construção naval (1). No mesmo dia, no assalto à sua casa
(clandestina), foram presos a sua companheira, Isabel Moita, e o filho de
ambos, João, de 21 meses. Permaneceu algumas semanas na sede da polícia
política, na rua António Maria Cardoso, em Lisboa e foi ali violentamente
espancado, torturado e sujeito a chantagem, em torno da companheira e do filho.
Esteve sem dormir 11 dias e 11 noites, em Maio, e de novo em Junho (2). Foi
transferido para a prisão de Caxias, onde esteve em isolamento durante alguns
meses, no último piso do reduto norte. Passou depois para outro piso, e
finalmente para o reduto sul, mas permaneceu quase sempre isolado. Gaspar e
Isabel casaram na prisão de Caxias, vendo assim reconhecidos alguns direitos
conjugais (embora permanecendo, evidentemente, em celas separadas). Gaspar
Barreira foi julgado em Tribunal Plenário em finais de Janeiro de 1967, e no
julgamento denunciou as violências a que fora sujeito. Foi condenado a três
anos e meio de prisão maior, perda dos direitos políticos por 15 anos, e
medidas de segurança de seis meses a três anos, prorrogáveis. [As "medidas
de segurança", que permitiam manter os presos políticos na prisão para
além do período de duração da sua pena de forma discricionária, foram, no seu
caso, de quase dois anos]. Passou o tempo de prisão no forte de Peniche,
conhecido pelo seu brutal regime prisional. Porém, durante esse período, teve
vários períodos de internamento na prisão-hospital de Caxias, devido à
deterioração do seu estado de saúde (3).
Gaspar Barreira aproveitou a prisão como uma
extensão da Universidade, dedicando-se intensamente ao estudo da física
["Praticamente tudo o que estudei, estudei na prisão”. Aprendeu
electrónica como autodidacta, na prisão]. Estudava diariamente, 10 a 12 horas
por dia, ao longo de mais de cinco anos. E, enquanto sonhava regressar à
Liberdade e à Ciência, ocupava-se também a dar aulas a companheiros. [Aconteceu
com um trabalhador agrícola do Couço quase analfabeto, que ele achava que tinha
talento para as matemáticas. Incentivava-o, dava-lhe aulas e, uma vez em liberdade,
o trabalhador do Couço continuou a estudar, acabando por formar-se em
Matemática, e ser professor].
Gaspar Barreira saiu da
prisão-hospital de Caxias, em liberdade condicional, (com inúmeras restrições),
no Verão de 1971.
2. Quando libertado, em 1971 (já na
Primavera Marcelista), Gaspar Barreira vê negada a sua admissão na Junta de
Energia Nuclear e como experimentador na Faculdade de Ciências da Universidade
de Lisboa (FCUL). A PIDE-DGS alegava "não oferece garantias de cooperar na
realização dos fins superiores do Estado"; ou então, pura e simplesmente,
os papéis da sua candidatura eram dados como “perdidos”. Apesar de todas as
dificuldades, em 1972 Gaspar Barreira conseguiu juntar-se ao Grupo Experimental
de Física da FCUL, liderado por Gomes Ferreira, integrando a Equipa de Física
Nuclear de Fernando Bragança Gil. [Bragança Gil apoia-o muito e é a primeira
pessoa a acolhê-lo na ciência]. Ainda nos anos 70, GB esteve ligado ao Centro
de Física Nuclear da Universidade de Lisboa, onde se destaca ao desenvolver
projectos pioneiros.
Logo após o 25 de Abril, no período
revolucionário, GB torna-se menos activo no laboratório porque a sua
intervenção cívica vai decorrer em paralelo com a sua dedicação à ciência. Faz,
então, parte do «Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE-DGS e da Legião
Portuguesa» e integra o gabinete do Conselheiro da Revolução Almirante Martins
Guerreiro (4). No Verão de 1975, numa viagem a Itália, em representação do
gabinete do Almirante Martins Guerreiro, conhece Giana Lanfranchi, que viria a
ser sua mulher.
.
3. Em 1980 integra o Centro
Internacional de Física Teórica, em Trieste (Itália) e, em pouco tempo,
torna-se director do Laboratório de Microprocessadores. Poderia ter ali ficado,
prosseguindo uma carreira em rápida ascensão, mas em 1985 aceita o desafio para
regressar a Portugal e, com Mariano Gago e Armando Policarpo, fundar o LIP
(Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas), e
construir a divisão de instrumentação do laboratório. Veio, então, participar
no processo de adesão de Portugal como Estado-membro ao CERN e na fundação do
LIP [criado para explorar as oportunidades trazidas pela adesão do país a esse
laboratório europeu]. Em 1986, é um dos principais promotores da adesão de
Portugal ao Laboratório Europeu de Física de partículas (CERN), ao lado de José
Mariano Gago [1948-2015]. De 2006 a 2008, foi o Delegado de Portugal ao
Conselho do CERN e ao Conselho do SESAME e a sua voz estava entre as mais
respeitadas. Gaspar Barreira não só foi um dos fundadores do LIP como lhe
dedica grande parte da sua imensa energia, nos últimos 30 anos (5).
Cientista de excelência e
personalidade verdadeiramente única, Gaspar Barreira morreu a 1 de Junho de
2019, vítima de cancro, mas deixou um imenso legado de visão, resistência e
resiliência. O seu último grande projecto, que acarinhou com entusiasmo, foi a
instalação (ainda não concretizada) em Portugal de um centro de tratamento e
pesquisa para terapia oncológica com protões (6).
4. Em 2006 recebeu a Ordem do Infante
D. Henrique pelo seu contributo para a internacionalização da investigação
científica portuguesa (7). Recebeu a Medalha de Mérito Científico em 2017.
Participou na elaboração da Proposta
do Grupo Consultivo da Fortaleza de Peniche (nomeado pelo Ministro da Cultura
Luís Castro Mendes), que veio a ser apresentada em Abril de 2017.
Em 2018 e 2019, já doente, ainda
integrou o grupo de cidadãos que promove a edificação de um memorial, em
Lisboa, às vítimas da PIDE.
Em Setembro de 2019, foi homenageado
pela Universidade de Lisboa, numa sessão que foi encerrada pelo Ministro da
Ciência Manuel Heitor. Nessa ocasião, entre os inúmeros testemunhos e mensagens
sobre Gaspar Barreira, deixados por colegas, amigos e companheiros, destacam-se
estes:
«Foi provavelmente a pessoas mais
completa, mais dotada e mais simples que encontrei. Um ser humano de excepção,
deu tudo e nunca pediu nada para si, nunca procurou qualquer vantagem ou
beneficio. Foi um exemplo na nossa luta e caminhada por um mundo melhor, mais
livre, justo e solidário onde todos possam realizar as suas potencialidades»
[Almirante Martins Guerreiro]
«Gaspar Barreira deixa-nos um imenso
legado de visão, resistência e resiliência. Empenhou-se como poucos na
construção, antes e depois do 25 de Abril de 1974, de um Portugal decente, onde
o Conhecimento, a Liberdade e a Racionalidade fossem determinantes» [Mário
Pimenta, Presidente do LIP]
Notas:
(1) Só depois do 25 de Abril foi
possível explicar a sua prisão: o operário em cuja casa tinha decorrido a
reunião (de nome Roque) era informador da PIDE.
(2) As graves condições de detenção
levaram a sua companheira, Isabel, a ferir-se, engolindo pedaços de uma colher.
Gaspar Barreira solicitou, a 26 de Junho, a visita do pai, Dr. Félix de Morais
Barreira, um pedido rapidamente indeferido pela PIDE.
(3) Em 8 de Fevereiro de 1967 foi
transferido para a cadeia do Forte de Peniche, onde ficou até 8 de Agosto desse
ano. Nessa data foi levado para o Hospital Prisão de S. João de Deus, devido ao
seu débil estado de saúde. Ali permaneceu durante nove meses e, em Maio de
1968, regressa ao Forte de Peniche. Em Novembro de 1969 inicia o cumprimento
das “medidas de segurança”, e em Abril de 1971 é novamente transferido para o
hospital.
Isabel Moita, geóloga, (presa de
Maio de 1966 a Janeiro de 1967), faz circular, na FCUL, um abaixo-assinado a
pedir a sua libertação, quando ele já tinha cumprido a pena a que fora
condenado e continuava preso ao abrigo das "medidas de segurança".
(4) Alfredo Caldeira, que também
fazia parte dessa Comissão, recorda: "Éramos poucos os que (...)
conseguíamos ultrapassar os nossos credos pessoais e bandeiras de grupo e
pensávamos e agíamos em conformidade com objectivos mais vastos. O Gaspar era
seguramente um deles" (…) Não foi fácil mergulhar naquele universo que nos
ensombrara toda a vida, a nós e quantas vezes aos nossos familiares, mas
sabíamos com absoluta certeza que ali (...) cumpríamos um dever de cidadania,
tentando impedir que a hidra subsistisse e pudesse desfazer o futuro". Também
Martins Guerreiro o lembra: "O meu gabinete de conselheiro da revolução,
com apenas três elementos, apresentava mais trabalho e propostas, mesmo na área
militar, que os gabinetes dos chefes militares que dispunham de inúmeros
colaboradores. Isso devia-se em grande parte ao trabalho, conhecimento,
capacidade de análise e síntese do Gaspar, além do seu sentido prático e
objectivo." [tributo a GB, Salão Nobre da Reitoria, Universidade de
Lisboa]
(5) Nos primeiros anos, participou
na experiência NA38 do SPS, onde as placas de electrónica FARSE foram as
primeiras desenvolvidas no LIP. Da electrónica, os seus interesses alargaram-se
à computação, inicialmente relacionada com sistemas de aquisição de dados e
programação de microprocessadores. Comprou a primeira máquina VAX e iniciou o
grupo de computação do LIP. A primeira escola de computação do CERN em Portugal
realizou-se logo em 1988.
Portugal tinha dois físicos de
partículas doutorados – Mariano Gago (que trabalhou no CERN), Armando Policarpo
– e dois ou três físicos nucleares, um dos quais Gaspar Barreira. “Era meia
dúzia de gatos-pingados. O LIP de hoje é muito diferente do de há 30 anos, é um
centro com cerca de 200 pessoas, mais de cem com doutoramento, que dividem a
sua actividade pelo CERN e pelas chamadas astropartículas.” [Gaspar Barreira no
Encontro Ciência 2017, em Lisboa].
(6) Em Dezembro de 2019, foi criada
a associação ProtoTera: Portuguese Proton-Therapy and Advanced Technologies for
Cancer Prevention and Treatment Association. Os seus membros fundadores são o
IPO, o LIP, o IST, e a Universidade de Coimbra (UC). A visão é promover uma
rede nacional para o diagnóstico e tratamento, investigação e educação sobre o
cancro, usando terapias com feixes de partículas de alta energia (em particular
a terapia com protões), para melhorar a precisão e a medicina personalizada.
(7) No início do século XXI, GB
envolveu-se profundamente na política científica – por exemplo, como
representante de Portugal em várias organizações científicas internacionais e
comités internacionais de ciência e política científica. “Era um defensor
convicto do CERN, da cooperação internacional e das infra-estruturas
científicas de longo prazo”
.
Dados biográficos colhidos,
seleccionados e organizados por Helena Pato, a partir de textos publicados em:
PT/TT/PIDE/E/010/138/27587
Sem comentários:
Enviar um comentário