100 anos de militância a caminho do futuro

1921-2021

quarta-feira, 22 de julho de 2020

GASPAR BARREIRA (1940 – 2019)


GASPAR BARREIRA (1940 – 2019)

Antifascista, militou desde jovem na oposição à Ditadura e foi alvo da maior perseguição e repressão. Torturado pela PIDE, esteve preso durante seis anos, em Caxias e na Fortaleza de Peniche. Cientista de elevado prestígio, antes e depois do 25 de Abril de 1974 destacou-se na construção de um país onde o Conhecimento, a Liberdade e a Racionalidade fossem determinantes.

1. Gaspar Pereira de Morais Barreira nasceu em Braga a 4 de Maio de 1940, filho de Almerinda Alves Pereira e de Félix Barreira. Viveu até depois do 25 de Abril com o nome de Gaspar Ferreira [em consequência de uma lei que obrigava a que os filhos fossem registados com o nome do marido da mãe, mesmo que o casal vivesse separado]. Filho ilegítimo, foi perfilhado em testamento pelo pai biológico, com quem cresceu, e com quem tinha uma relação próxima. No meio familiar recebeu, nas suas palavras, uma "formação liberal". O seu pai, Félix de Morais Barreira, pertencia à administração pública. Terminou precocemente a carreira em 1945, como secretário-geral do governo civil do Funchal, por se ter recusado a cumprir a ordem de Salazar de hastear a bandeira em sinal de luto pela morte de Hitler. Este episódio, segundo Gaspar Barreira (GB), marcou-o para sempre.

No ano lectivo de 1957/58, GB veio para Lisboa estudar engenharia no Instituto Superior Técnico, e cedo despertou para a militância política. O primeiro ano foi vivido no rescaldo da grande luta estudantil do ano anterior contra o «decreto-Lei 40 900» [que cerceava os direitos das associações de estudantes]. Associou-se muito cedo à candidatura do general Humberto Delgado à presidência da república, nas eleições de 1958. Tornou-se membro do Partido Comunista Português em 1959, desenvolvendo actividade no sector intelectual. Passou à clandestinidade, como funcionário do PCP, no segundo semestre de 1963, um corte radical e difícil com uma vida normal. Foi destacado para seguir um curso na Checoslováquia e depois na URSS. Deixou Portugal logo após o nascimento do filho, e esteve no estrangeiro durante 15 meses. No dia 14 de Maio de 1966, GB foi preso pela PIDE numa rua de Lisboa, quando regressava a casa (clandestina), depois de uma reunião em casa de um operário da construção naval (1). No mesmo dia, no assalto à sua casa (clandestina), foram presos a sua companheira, Isabel Moita, e o filho de ambos, João, de 21 meses. Permaneceu algumas semanas na sede da polícia política, na rua António Maria Cardoso, em Lisboa e foi ali violentamente espancado, torturado e sujeito a chantagem, em torno da companheira e do filho. Esteve sem dormir 11 dias e 11 noites, em Maio, e de novo em Junho (2). Foi transferido para a prisão de Caxias, onde esteve em isolamento durante alguns meses, no último piso do reduto norte. Passou depois para outro piso, e finalmente para o reduto sul, mas permaneceu quase sempre isolado. Gaspar e Isabel casaram na prisão de Caxias, vendo assim reconhecidos alguns direitos conjugais (embora permanecendo, evidentemente, em celas separadas). Gaspar Barreira foi julgado em Tribunal Plenário em finais de Janeiro de 1967, e no julgamento denunciou as violências a que fora sujeito. Foi condenado a três anos e meio de prisão maior, perda dos direitos políticos por 15 anos, e medidas de segurança de seis meses a três anos, prorrogáveis. [As "medidas de segurança", que permitiam manter os presos políticos na prisão para além do período de duração da sua pena de forma discricionária, foram, no seu caso, de quase dois anos]. Passou o tempo de prisão no forte de Peniche, conhecido pelo seu brutal regime prisional. Porém, durante esse período, teve vários períodos de internamento na prisão-hospital de Caxias, devido à deterioração do seu estado de saúde (3).

Gaspar Barreira aproveitou a prisão como uma extensão da Universidade, dedicando-se intensamente ao estudo da física ["Praticamente tudo o que estudei, estudei na prisão”. Aprendeu electrónica como autodidacta, na prisão]. Estudava diariamente, 10 a 12 horas por dia, ao longo de mais de cinco anos. E, enquanto sonhava regressar à Liberdade e à Ciência, ocupava-se também a dar aulas a companheiros. [Aconteceu com um trabalhador agrícola do Couço quase analfabeto, que ele achava que tinha talento para as matemáticas. Incentivava-o, dava-lhe aulas e, uma vez em liberdade, o trabalhador do Couço continuou a estudar, acabando por formar-se em Matemática, e ser professor]. 

Gaspar Barreira saiu da prisão-hospital de Caxias, em liberdade condicional, (com inúmeras restrições), no Verão de 1971.

2. Quando libertado, em 1971 (já na Primavera Marcelista), Gaspar Barreira vê negada a sua admissão na Junta de Energia Nuclear e como experimentador na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL). A PIDE-DGS alegava "não oferece garantias de cooperar na realização dos fins superiores do Estado"; ou então, pura e simplesmente, os papéis da sua candidatura eram dados como “perdidos”. Apesar de todas as dificuldades, em 1972 Gaspar Barreira conseguiu juntar-se ao Grupo Experimental de Física da FCUL, liderado por Gomes Ferreira, integrando a Equipa de Física Nuclear de Fernando Bragança Gil. [Bragança Gil apoia-o muito e é a primeira pessoa a acolhê-lo na ciência]. Ainda nos anos 70, GB esteve ligado ao Centro de Física Nuclear da Universidade de Lisboa, onde se destaca ao desenvolver projectos pioneiros.

Logo após o 25 de Abril, no período revolucionário, GB torna-se menos activo no laboratório porque a sua intervenção cívica vai decorrer em paralelo com a sua dedicação à ciência. Faz, então, parte do «Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE-DGS e da Legião Portuguesa» e integra o gabinete do Conselheiro da Revolução Almirante Martins Guerreiro (4). No Verão de 1975, numa viagem a Itália, em representação do gabinete do Almirante Martins Guerreiro, conhece Giana Lanfranchi, que viria a ser sua mulher.
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3. Em 1980 integra o Centro Internacional de Física Teórica, em Trieste (Itália) e, em pouco tempo, torna-se director do Laboratório de Microprocessadores. Poderia ter ali ficado, prosseguindo uma carreira em rápida ascensão, mas em 1985 aceita o desafio para regressar a Portugal e, com Mariano Gago e Armando Policarpo, fundar o LIP (Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas), e construir a divisão de instrumentação do laboratório. Veio, então, participar no processo de adesão de Portugal como Estado-membro ao CERN e na fundação do LIP [criado para explorar as oportunidades trazidas pela adesão do país a esse laboratório europeu]. Em 1986, é um dos principais promotores da adesão de Portugal ao Laboratório Europeu de Física de partículas (CERN), ao lado de José Mariano Gago [1948-2015]. De 2006 a 2008, foi o Delegado de Portugal ao Conselho do CERN e ao Conselho do SESAME e a sua voz estava entre as mais respeitadas. Gaspar Barreira não só foi um dos fundadores do LIP como lhe dedica grande parte da sua imensa energia, nos últimos 30 anos (5).

Cientista de excelência e personalidade verdadeiramente única, Gaspar Barreira morreu a 1 de Junho de 2019, vítima de cancro, mas deixou um imenso legado de visão, resistência e resiliência. O seu último grande projecto, que acarinhou com entusiasmo, foi a instalação (ainda não concretizada) em Portugal de um centro de tratamento e pesquisa para terapia oncológica com protões (6).
4. Em 2006 recebeu a Ordem do Infante D. Henrique pelo seu contributo para a internacionalização da investigação científica portuguesa (7). Recebeu a Medalha de Mérito Científico em 2017. 

Participou na elaboração da Proposta do Grupo Consultivo da Fortaleza de Peniche (nomeado pelo Ministro da Cultura Luís Castro Mendes), que veio a ser apresentada em Abril de 2017.

Em 2018 e 2019, já doente, ainda integrou o grupo de cidadãos que promove a edificação de um memorial, em Lisboa, às vítimas da PIDE.

Em Setembro de 2019, foi homenageado pela Universidade de Lisboa, numa sessão que foi encerrada pelo Ministro da Ciência Manuel Heitor. Nessa ocasião, entre os inúmeros testemunhos e mensagens sobre Gaspar Barreira, deixados por colegas, amigos e companheiros, destacam-se estes:
«Foi provavelmente a pessoas mais completa, mais dotada e mais simples que encontrei. Um ser humano de excepção, deu tudo e nunca pediu nada para si, nunca procurou qualquer vantagem ou beneficio. Foi um exemplo na nossa luta e caminhada por um mundo melhor, mais livre, justo e solidário onde todos possam realizar as suas potencialidades» [Almirante Martins Guerreiro]
«Gaspar Barreira deixa-nos um imenso legado de visão, resistência e resiliência. Empenhou-se como poucos na construção, antes e depois do 25 de Abril de 1974, de um Portugal decente, onde o Conhecimento, a Liberdade e a Racionalidade fossem determinantes» [Mário Pimenta, Presidente do LIP]

Notas:
(1) Só depois do 25 de Abril foi possível explicar a sua prisão: o operário em cuja casa tinha decorrido a reunião (de nome Roque) era informador da PIDE.
(2) As graves condições de detenção levaram a sua companheira, Isabel, a ferir-se, engolindo pedaços de uma colher. Gaspar Barreira solicitou, a 26 de Junho, a visita do pai, Dr. Félix de Morais Barreira, um pedido rapidamente indeferido pela PIDE.
(3) Em 8 de Fevereiro de 1967 foi transferido para a cadeia do Forte de Peniche, onde ficou até 8 de Agosto desse ano. Nessa data foi levado para o Hospital Prisão de S. João de Deus, devido ao seu débil estado de saúde. Ali permaneceu durante nove meses e, em Maio de 1968, regressa ao Forte de Peniche. Em Novembro de 1969 inicia o cumprimento das “medidas de segurança”, e em Abril de 1971 é novamente transferido para o hospital.
Isabel Moita, geóloga, (presa de Maio de 1966 a Janeiro de 1967), faz circular, na FCUL, um abaixo-assinado a pedir a sua libertação, quando ele já tinha cumprido a pena a que fora condenado e continuava preso ao abrigo das "medidas de segurança".
(4) Alfredo Caldeira, que também fazia parte dessa Comissão, recorda: "Éramos poucos os que (...) conseguíamos ultrapassar os nossos credos pessoais e bandeiras de grupo e pensávamos e agíamos em conformidade com objectivos mais vastos. O Gaspar era seguramente um deles" (…) Não foi fácil mergulhar naquele universo que nos ensombrara toda a vida, a nós e quantas vezes aos nossos familiares, mas sabíamos com absoluta certeza que ali (...) cumpríamos um dever de cidadania, tentando impedir que a hidra subsistisse e pudesse desfazer o futuro". Também Martins Guerreiro o lembra: "O meu gabinete de conselheiro da revolução, com apenas três elementos, apresentava mais trabalho e propostas, mesmo na área militar, que os gabinetes dos chefes militares que dispunham de inúmeros colaboradores. Isso devia-se em grande parte ao trabalho, conhecimento, capacidade de análise e síntese do Gaspar, além do seu sentido prático e objectivo." [tributo a GB, Salão Nobre da Reitoria, Universidade de Lisboa]
(5) Nos primeiros anos, participou na experiência NA38 do SPS, onde as placas de electrónica FARSE foram as primeiras desenvolvidas no LIP. Da electrónica, os seus interesses alargaram-se à computação, inicialmente relacionada com sistemas de aquisição de dados e programação de microprocessadores. Comprou a primeira máquina VAX e iniciou o grupo de computação do LIP. A primeira escola de computação do CERN em Portugal realizou-se logo em 1988.
Portugal tinha dois físicos de partículas doutorados – Mariano Gago (que trabalhou no CERN), Armando Policarpo – e dois ou três físicos nucleares, um dos quais Gaspar Barreira. “Era meia dúzia de gatos-pingados. O LIP de hoje é muito diferente do de há 30 anos, é um centro com cerca de 200 pessoas, mais de cem com doutoramento, que dividem a sua actividade pelo CERN e pelas chamadas astropartículas.” [Gaspar Barreira no Encontro Ciência 2017, em Lisboa].
(6) Em Dezembro de 2019, foi criada a associação ProtoTera: Portuguese Proton-Therapy and Advanced Technologies for Cancer Prevention and Treatment Association. Os seus membros fundadores são o IPO, o LIP, o IST, e a Universidade de Coimbra (UC). A visão é promover uma rede nacional para o diagnóstico e tratamento, investigação e educação sobre o cancro, usando terapias com feixes de partículas de alta energia (em particular a terapia com protões), para melhorar a precisão e a medicina personalizada.
(7) No início do século XXI, GB envolveu-se profundamente na política científica – por exemplo, como representante de Portugal em várias organizações científicas internacionais e comités internacionais de ciência e política científica. “Era um defensor convicto do CERN, da cooperação internacional e das infra-estruturas científicas de longo prazo”
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Dados biográficos colhidos, seleccionados e organizados por Helena Pato, a partir de textos publicados em:
PT/TT/PIDE/E/010/138/27587

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