O Partido e os intelectuais
nos anos 40 - O caso Bento de Jesus Caraça
por Manuel Gusmão
A reorganização do PCP e os seus III
e IV Congressos (o I e o II ilegais), realizados respetivamente em 1943 e 1946,
marcam a história de Portugal nos anos 40. No prefácio (de 1997) ao Informe
Político do Comité Central ao IV Congresso do PCP, Álvaro Cunhal escreve: «A
grande maioria dos quadros de direcção que se formaram nos anos da
reorganização vinha da classe operária e revelava-se e forjava-se na
intervenção directa e destacada em lutas de massas.
«Citem-se alguns, limitando-nos a
camaradas com tal actividade na altura do IV congresso, aos quais se juntaram,
nos anos seguintes, muitos outros militantes de grande valor formados na mesma
escola da organização clandestina e da luta de massas. Das construções navais:
Alfredo Dinis (assassinado pela PVDE), Jaime Serra, Américo de Sousa. Da
indústria corticeira: José Vitoriano, Américo Leal, José Carlos. Da indústria
metalúrgica: António Dias Lourenço, Manuel Rodrigues da Silva. Da indústria
vidreira: José Gregório, Afonso Gregório, Joaquim Gomes, que já nos anos 30,
com 16 anos, dirigia a célebre luta dos aprendizes. Do proletariado agrícola
alentejano: António Gervásio, Dinis Miranda. Da pequena indústria: Georgette
Ferreira. A partir da organização clandestina: Octávio Pato, Sérgio Vilarigues,
Manuel Guedes, Francisco Miguel, José Magro.
«Escola semelhante de formação
comunista no trabalho da organização e na luta de massas foi a da juventude. A
esta lista de dirigentes operários junte-se, pois, a referência […] ao elevado
número de valiosos quadros forjados no MUD Juvenil». Os quais páginas antes Álvaro Cunhal mencionara: «Que se lembrem por
ordem alfabética e a título de exemplos significativos: Alberto Vilaça, Ângelo
Veloso, António Simões de Abreu, Areosa Feio, Aurélio Santos, Carlos Aboim
Inglês, Carlos Brito, Carlos Costa, Carlos Pinhão, Dinis Miranda, Domingos
Abrantes, Hernâni Silva, Ilídio Esteves, João Honrado, José Dias Coelho, José
Gil Alves, Manuel Andrade, Margarida Tengarrinha, Maria das Dores (Lolita),
Pedro Ramos de Almeida, Plácido de Sousa, Rogério Ribeiro.»
Um pouco mais à frente, Álvaro
Cunhal acrescentará: «E faça-se ainda indispensável referência ao valor da luta
revolucionária e ao valor científico e artístico dos intelectuais comunistas
nos anos da reorganização. Lembrem-se os professores e cientistas Bento Caraça,
Manuel Valadares, Zaluar Nunes, António Aniceto Monteiro, Óscar Lopes.
Lembrem-se escritores do neo-realismo: Alves Redol, Manuel da Fonseca, Joaquim
Namorado, Carlos de Oliveira, Alexandre Cabral. Músicos como Lopes-Graça.
Pintores e escultores como Vasco da Conceição, Maria Barreiros, Augusto Gomes,
Júlio Pomar, valiosos artistas e valiosos quadros, nesses anos. Soeiro Pereira
Gomes é um caso à parte. Não foi o escritor que se tornou um militante
clandestino e organizador de greves e outras lutas de massas, mas esse
militante comunista que, revelando-se talentoso escritor, trouxe à literatura
portuguesa aspectos vivos da sua experiência de revolucionário.»
Só a partir destas listas de quadros
se pode concluir que a primeira metade da década de 40 exemplifica uma
tendência que marca a história do PCP: é nos momentos em que cresce (se amplia,
se aprofunda) e se renova a influência orgânica na classe operária que cresce
também a influência entre os intelectuais. Esta tese pode formular-se também
assim: não há qualquer incompatibilidade, antes há uma correlação efectiva,
entre influência operária e influência intelectual.
Nos anos 40, a reorganização do PCP
tem como efeitos:
A continuidade da acção do Partido,
apoiando-se e orientando-se na e para a acção e luta de massas.
A continuidade da direcção do
Partido e da imprensa partidária pela adopção de medidas de defesa do aparelho
clandestino.
O reforço da influência operária e
camponesa que se traduz nas grandes greves, manifestações e lutas nas regiões
de Lisboa, Santarém e Setúbal ao longo da primeira metade dos anos 40.
Alargamento vigoroso da influência
entre a intelectualidade, quer entre cientistas e professores universitários,
quer entre escritores e artistas.
O lançamento do Movimento de Unidade
Nacional Anti-Fascista (MUNAF) e depois do Movimento de Unidade Democrática
(MUD) e do MUD Juvenil e a definição no VI Congresso do caminho para o
derrubamento do fascismo.
O Partido que se vinha afirmando já
como o partido do proletariado português, torna-se, com a reorganização, um
grande partido nacional, sem perder a sua representatividade operária.
Os vários planos da acção dos
intelectuais, neste período, podem ser sintetizados por uma expressão que Bento
de Jesus Caraça usará: despertar a alma colectiva das massas.
Essa acção traduz-se num trabalho de
criação e de animação militante de estruturas de democratização do acesso à
cultura e de divulgação cultural: sociedades recreativas, bibliotecas, jornais,
edições, escolas e universidades populares.
Os artistas, escritores, pintores e
compositores que Álvaro Cunhal destaca, se têm traços em comum, que vêm da
partilha de uma ideologia, características culturais e artísticos, apresentam
também características que são, entretanto, testemunhas de uma forte
individuação, sinais de personalidades efectivamente singulares.
Lembremo-nos da epígrafe de Gaibéus
(1939) de Alves Redol: «Este romance não pretende ficar na literatura como obra
de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo.
Depois disso, será o que os outros entenderem.» Esta epígrafe foi mal
compreendida, lida sobretudo como uma indesculpável menorização da arte
literária. Entretanto, o seu autor publicara no ano anterior uma monografia intitulada
Glória. Uma Aldeia do Ribatejo. Ensaio Etnográfico. Esta ambivalência entre o
olhar do etnógrafo e a escrita literária manifesta, perante um leitor atento e
sem preconceitos ideológicos, os traços de uma legítima e autêntica paixão pelo
povo.
Se não se pode dizer que o
neo-realismo nasceu de uma decisão do PCP, porque as coisas não se passam
assim, nestas esferas da acção humana, pode-se dizer, porque é um facto
inegável, que nasce do trabalho artístico e da visão do mundo de um forte
núcleo de artistas que eram militantes comunistas.
Bento de Jesus Caraça (1901-1948)
Carlos Aboim Inglês apresentava
assim Bento de Jesus Caraça, numa sessão de homenagem que lhe foi dedicada em
1978:
«Filho do povo trabalhador, ele foi
um dos poucos que, saído “do fundo das massas”, como ele usava dizer, um dos
que mais exemplarmente “se conservaram fiéis à sua própria classe e aos seus
ideais de emancipação humana e não desertaram ingressando no campo contrário”
Caraça nutria um profundo desprezo, tanto mais profundo quanto era o de
um homem profundamente humano e compreensivo, por aqueles que, saídos do povo,
se não “conservaram fiéis à sua origem” e “se bandearam, por acção dos vários
meios de que o aparelho dispõe, com os interesses dos que mandam”.»
Bento de Jesus Caraça foi Prof.
Catedrático do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF),
desde 1929 até 1946. Em 1938, propôs com outros ao Conselho Escolar do ISCEF a
fundação do Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia, de que foi
Director até Outubro de 1946, altura em que foi demitido do ISCEF. Em 1940
fundou, com outros, a Gazeta de Matemática. Foi Presidente da UPP –
Universidade Popular Portuguesa, extinta em 1944. Em 1941, fundou a Biblioteca
Cosmos de que foi o único Director.
Dias Lourenço recorda em 2001, por
ocasião do 1.º centenário do seu nascimento: «É para leccionar num destes
cursos de aperfeiçoamento, do sindicato dos arsenalistas da Marinha, que Bento
Gonçalves convida Bento de Jesus Caraça.»
«Nesta época, de grande repressão,
os presos políticos iam directamente para Angra do Heroísmo. De Angra iam
depois para o Tarrafal uns, outros ficavam lá, outros regressavam. Mas Angra
era, em geral, o porto de chegada dos presos políticos que iam deportados. Ora
bem, um dos presos políticos deportados foi o Manuel Rodrigues, que era
comunista, e viria a ser o principal detentor do capital inicial da editora
Cosmos. Foi ele mesmo que me contou esta história. Em Angra, Manuel Rodrigues
encontrou-se com o Bento Gonçalves, já então conhecido como secretário-geral do
PCP, e colocou-lhe uma questão: “Ó Bento, eu tenho umas coroas e não sei que
lhes hei-de fazer. Está-me a custar perder aquilo de qualquer maneira... Tens
alguma ideia da utilidade que possam vir a ter?” E o Bento Gonçalves respondeu:
“Sim. Tu podes avançar com uma editora de livros virados para a cultura
popular. Bem feitos, para passar as malhas do fascismo. E podes fazer uma coisa
com grande expansão – cultural e revolucionária. E olha, a pessoa indicada para
dirigir isso é o professor Bento de Jesus Caraça. Vais ter com ele –
dizes que vais da minha parte – e pões-lhe esse problema.” Bento de Jesus
Caraça aceitou a proposta e assumiu a direcção da colecção.»
Por sua vez Álvaro Cunhal refere: «O
Avante! de Janeiro de 1944 noticiava a formação do Conselho Nacional, órgão
supremo do MUNAF. O êxito deveu-se em grande parte à acção de Bento Caraça,
como militante do Partido, graças à sua influência nos meios intelectuais e
entre os antifascistas. Acompanhei muito de perto toda essa acção. […] O
Avante! de Janeiro de 1944 confirmando a criação do MUNAF anunciava a formação
do Conselho Nacional em que inicialmente entrámos, como representantes do PCP,
B. Caraça e eu próprio.»
Em 1931, numa conferência realizada
na Universidade Popular de Setúbal, o tema da cultura surge a partir de dois
elementos da habitação da terra pelo homem o conhecimento crescente do mundo em
que vive, e que torna a sua vida mais segura, e o sentimento do belo, que lhe
vem da contemplação da natureza e que, introduzido nas relações sociais, dá ao
homem objectivos de ordem moral.
«O aperfeiçoamento constante dos
meios de satisfação e desenvolvimento destas necessidades [de cooperação],
ideias [de entreajuda] e sentimentos [como os do belo], constitui a cultura,
que no dizer de Karl Marx “compreende o máximo desenvolvimento das capacidades
intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem.”
«A cultura é assim simultaneamente
um meio e um fim.»
Esta última frase mostra-nos que
nesta altura dos anos 30, Bento de Jesus Caraça já tinha ultrapassado uma
concepção instrumental da cultura. Repare-se que, para nós marxistas, a
categoria de instrumento ou de instrumentalidade não deixa de ser importante
porque meios e instrumentos são elementos do processo de trabalho, assim como
de todo o processo de transformação. Mas de facto uma concepção ampla e
profunda da cultura implica considerá-la também como um fim em si mesmo, livre
jogo das forças humanas.
Daqui, Bento de Jesus Caraça,
retirará a ideia de que se deve promover a cultura de todos e isso é possível
porque ela não é inacessível às massas: o ser humano é indefinidamente
aperfeiçoável e a cultura é exactamente a condição desse aperfeiçoamento
progressivo e constante:
1.1.«Dar a cada homem a consciência
integral da sua própria dignidade.» «A humilhação do homem perante o homem é imoral.»
1.2.«[…] tender ao desenvolvimento
do espírito de solidariedade». Ao espírito de internacionalismo na «formação da pátria humana».
1.3.A escola deve ser pública,
gratuita e os que a frequentam devem ser apoiados materialmente para que não
sejam obrigados a abandoná-la por falta de meios.
1.4.Renovação constante do Ensino
para combater a cristalização e a burocratização.
De 1933 data a famosa conferência «A
cultura integral do indivíduo». Aí, a reflexão atribui-se uma enorme
responsabilidade: «O que o mundo for amanhã, é o esforço de todos nós que o
determinará.»
No presente está posta à nossa
geração como grande tarefa a de «despertar a alma colectiva das massas».
«O que é o homem culto? É aquele
que:
«1 – Tem consciência da sua posição
no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence;
«2 – Tem consciência da sua
personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano;
«3 – Faz do aperfeiçoamento do seu
ser interior a preocupação máxima e fim último da vida.»
Ser culto não é ser sábio, mas
implica um certo grau de saber, aquele precisamente que fornece uma base mínima
para a satisfação das três condições enunciadas.
«A aquisição da cultura significa
uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no
homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades
potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral
e artístico; significa numa palavra, a conquista da liberdade.»
Bento de Jesus Caraça não perde o pé
nestas altas esferas do pensamento reflexivo, e acrescenta:
«Condição indispensável para que o
homem possa trilhar a senda da cultura – que ele seja economicamente independente.
Consequência – o problema económico é, de todos os problemas sociais, aquele
que tem de ser resolvido em primeiro lugar.»
Bento de Jesus Caraça combateu por
uma concepção multifacetada da cultura, que não se restringisse à literatura e
às outras artes, e incorporasse a cultura científica. Em relação ao ensino
formal, nas Universidades propõe num artigo de O Diabo, intitulado «Humanismo e
Humanidades»:
Haveria, então, um núcleo «comum a
todas as formaturas universitárias. Esse núcleo compreenderia: I) um grupo de
estudos históricos centrados na história da civilização, tomando atenção
especial: à história da economia e do trabalho; à história da ciência, à
história da filosofia, à história geral das artes e das religiões; II) um grupo
de estudos científicos, compreendendo as bases e os conceitos fundamentais da
matemática, da astronomia, da física, da química, da biologia e da economia
política.
«Evidentemente, não se trataria,
neste núcleo comum, de formar especialistas em nenhuma das rubricas apontadas,
mas de habilitar, o que agora não sucede, todo o licenciado a saber situar-se
no conjunto de ideias do seu tempo […].»
Foi graças ao trabalho desenvolvido
nos anos 40 e nas décadas seguintes que foi possível escrever isto, no
relatório do Comité Central ao VI Congresso do PCP, realizado em 1965, o
Congresso que aprovou o Programa da Revolução Democrática e Nacional, sem o
qual o 25 de Abril e o fluxo revolucionário de Abril seriam quase incompreensíveis.
Foi graças a esse trabalho e ao que se lhe pôde acrescentar que o fluxo da
revolução portuguesa foi um dos momentos que exibem aquela tendência de
crescimento da influência do Partido na classe operária e entre os
intelectuais.
«Portugal apresenta as
características “originais” de ser um país dominado pelo imperialismo
estrangeiro e ser um país colonialista; de ser um país atrasado, miserável e
“subdesenvolvido” e um país onde as relações capitalistas de produção estão
altamente desenvolvidas, inclusivamente nos campos; de ser um país com uma
indústria débil e uma agricultura primitiva e onde entretanto o proletariado
(industrial e rural no seu conjunto) tem um peso numérico relativo não inferior
ao verificado em países industrializados e onde é muito elevado o grau de
concentração do capital; um país onde existe há 39 anos uma ditadura fascista
com um aparelho de Estado forte, sólido e bem organizado, que procura abafar
pelo terror as mais ligeiras reclamações e protestos populares, e um país onde
o movimento popular antifascista é tão amplo e profundo que aparece
insistentemente à luz do dia em lutas económicas e políticas; um país onde é
prosseguida uma política obscurantista, onde há quase 40 por cento de
analfabetos, onde se persegue a arte e a cultura e um país onde, vencendo as
barreiras fascistas, floresce um amplo movimento literário e artístico de
conteúdo democrático.»
Notas
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