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1921-2021

quinta-feira, 21 de maio de 2020

O Partido e os intelectuais nos anos 40 - O caso Bento de Jesus Caraça por Manuel Gusmão


O Partido e os intelectuais nos anos 40 - O caso Bento de Jesus Caraça

A reorganização do PCP e os seus III e IV Congressos (o I e o II ilegais), realizados respetivamente em 1943 e 1946, marcam a história de Portugal nos anos 40. No prefácio (de 1997) ao Informe Político do Comité Central ao IV Congresso do PCP, Álvaro Cunhal escreve: «A grande maioria dos quadros de direcção que se formaram nos anos da reorganização vinha da classe operária e revelava-se e forjava-se na intervenção directa e destacada em lutas de massas. 


«Citem-se alguns, limitando-nos a camaradas com tal actividade na altura do IV congresso, aos quais se juntaram, nos anos seguintes, muitos outros militantes de grande valor formados na mesma escola da organização clandestina e da luta de massas. Das construções navais: Alfredo Dinis (assassinado pela PVDE), Jaime Serra, Américo de Sousa. Da indústria corticeira: José Vitoriano, Américo Leal, José Carlos. Da indústria metalúrgica: António Dias Lourenço, Manuel Rodrigues da Silva. Da indústria vidreira: José Gregório, Afonso Gregório, Joaquim Gomes, que já nos anos 30, com 16 anos, dirigia a célebre luta dos aprendizes. Do proletariado agrícola alentejano: António Gervásio, Dinis Miranda. Da pequena indústria: Georgette Ferreira. A partir da organização clandestina: Octávio Pato, Sérgio Vilarigues, Manuel Guedes, Francisco Miguel, José Magro.

«Escola semelhante de formação comunista no trabalho da organização e na luta de massas foi a da juventude. A esta lista de dirigentes operários junte-se, pois, a referência […] ao elevado número de valiosos quadros forjados no MUD Juvenil». Os quais páginas antes Álvaro Cunhal mencionara: «Que se lembrem por ordem alfabética e a título de exemplos significativos: Alberto Vilaça, Ângelo Veloso, António Simões de Abreu, Areosa Feio, Aurélio Santos, Carlos Aboim Inglês, Carlos Brito, Carlos Costa, Carlos Pinhão, Dinis Miranda, Domingos Abrantes, Hernâni Silva, Ilídio Esteves, João Honrado, José Dias Coelho, José Gil Alves, Manuel Andrade, Margarida Tengarrinha, Maria das Dores (Lolita), Pedro Ramos de Almeida, Plácido de Sousa, Rogério Ribeiro.»

Um pouco mais à frente, Álvaro Cunhal acrescentará: «E faça-se ainda indispensável referência ao valor da luta revolucionária e ao valor científico e artístico dos intelectuais comunistas nos anos da reorganização. Lembrem-se os professores e cientistas Bento Caraça, Manuel Valadares, Zaluar Nunes, António Aniceto Monteiro, Óscar Lopes. Lembrem-se escritores do neo-realismo: Alves Redol, Manuel da Fonseca, Joaquim Namorado, Carlos de Oliveira, Alexandre Cabral. Músicos como Lopes-Graça. Pintores e escultores como Vasco da Conceição, Maria Barreiros, Augusto Gomes, Júlio Pomar, valiosos artistas e valiosos quadros, nesses anos. Soeiro Pereira Gomes é um caso à parte. Não foi o escritor que se tornou um militante clandestino e organizador de greves e outras lutas de massas, mas esse militante comunista que, revelando-se talentoso escritor, trouxe à literatura portuguesa aspectos vivos da sua experiência de revolucionário.»

Só a partir destas listas de quadros se pode concluir que a primeira metade da década de 40 exemplifica uma tendência que marca a história do PCP: é nos momentos em que cresce (se amplia, se aprofunda) e se renova a influência orgânica na classe operária que cresce também a influência entre os intelectuais. Esta tese pode formular-se também assim: não há qualquer incompatibilidade, antes há uma correlação efectiva, entre influência operária e influência intelectual.

Nos anos 40, a reorganização do PCP tem como efeitos:

A continuidade da acção do Partido, apoiando-se e orientando-se na e para a acção e luta de massas.

A continuidade da direcção do Partido e da imprensa partidária pela adopção de medidas de defesa do aparelho clandestino.

O reforço da influência operária e camponesa que se traduz nas grandes greves, manifestações e lutas nas regiões de Lisboa, Santarém e Setúbal ao longo da primeira metade dos anos 40.

Alargamento vigoroso da influência entre a intelectualidade, quer entre cientistas e professores universitários, quer entre escritores e artistas.

O lançamento do Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista (MUNAF) e depois do Movimento de Unidade Democrática (MUD) e do MUD Juvenil e a definição no VI Congresso do caminho para o derrubamento do fascismo.

O Partido que se vinha afirmando já como o partido do proletariado português, torna-se, com a reorganização, um grande partido nacional, sem perder a sua representatividade operária.

Os vários planos da acção dos intelectuais, neste período, podem ser sintetizados por uma expressão que Bento de Jesus Caraça usará: despertar a alma colectiva das massas.

Essa acção traduz-se num trabalho de criação e de animação militante de estruturas de democratização do acesso à cultura e de divulgação cultural: sociedades recreativas, bibliotecas, jornais, edições, escolas e universidades populares.

Os artistas, escritores, pintores e compositores que Álvaro Cunhal destaca, se têm traços em comum, que vêm da partilha de uma ideologia, características culturais e artísticos, apresentam também características que são, entretanto, testemunhas de uma forte individuação, sinais de personalidades efectivamente singulares.

Lembremo-nos da epígrafe de Gaibéus (1939) de Alves Redol: «Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem.» Esta epígrafe foi mal compreendida, lida sobretudo como uma indesculpável menorização da arte literária. Entretanto, o seu autor publicara no ano anterior uma monografia intitulada Glória. Uma Aldeia do Ribatejo. Ensaio Etnográfico. Esta ambivalência entre o olhar do etnógrafo e a escrita literária manifesta, perante um leitor atento e sem preconceitos ideológicos, os traços de uma legítima e autêntica paixão pelo povo.

Se não se pode dizer que o neo-realismo nasceu de uma decisão do PCP, porque as coisas não se passam assim, nestas esferas da acção humana, pode-se dizer, porque é um facto inegável, que nasce do trabalho artístico e da visão do mundo de um forte núcleo de artistas que eram militantes comunistas.

Bento de Jesus Caraça (1901-1948)
Carlos Aboim Inglês apresentava assim Bento de Jesus Caraça, numa sessão de homenagem que lhe foi dedicada em 1978:
«Filho do povo trabalhador, ele foi um dos poucos que, saído “do fundo das massas”, como ele usava dizer, um dos que mais exemplarmente “se conservaram fiéis à sua própria classe e aos seus ideais de emancipação humana e não desertaram ingressando no campo contrário”

Caraça nutria um profundo desprezo, tanto mais profundo quanto era o de um homem profundamente humano e compreensivo, por aqueles que, saídos do povo, se não “conservaram fiéis à sua origem” e “se bandearam, por acção dos vários meios de que o aparelho dispõe, com os interesses dos que mandam”.»

Bento de Jesus Caraça foi Prof. Catedrático do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), desde 1929 até 1946. Em 1938, propôs com outros ao Conselho Escolar do ISCEF a fundação do Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia, de que foi Director até Outubro de 1946, altura em que foi demitido do ISCEF. Em 1940 fundou, com outros, a Gazeta de Matemática. Foi Presidente da UPP – Universidade Popular Portuguesa, extinta em 1944. Em 1941, fundou a Biblioteca Cosmos de que foi o único Director.

Dias Lourenço recorda em 2001, por ocasião do 1.º centenário do seu nascimento: «É para leccionar num destes cursos de aperfeiçoamento, do sindicato dos arsenalistas da Marinha, que Bento Gonçalves convida Bento de Jesus Caraça.»

«Nesta época, de grande repressão, os presos políticos iam directamente para Angra do Heroísmo. De Angra iam depois para o Tarrafal uns, outros ficavam lá, outros regressavam. Mas Angra era, em geral, o porto de chegada dos presos políticos que iam deportados. Ora bem, um dos presos políticos deportados foi o Manuel Rodrigues, que era comunista, e viria a ser o principal detentor do capital inicial da editora Cosmos. Foi ele mesmo que me contou esta história. Em Angra, Manuel Rodrigues encontrou-se com o Bento Gonçalves, já então conhecido como secretário-geral do PCP, e colocou-lhe uma questão: “Ó Bento, eu tenho umas coroas e não sei que lhes hei-de fazer. Está-me a custar perder aquilo de qualquer maneira... Tens alguma ideia da utilidade que possam vir a ter?” E o Bento Gonçalves respondeu: “Sim. Tu podes avançar com uma editora de livros virados para a cultura popular. Bem feitos, para passar as malhas do fascismo. E podes fazer uma coisa com grande expansão – cultural e revolucionária. E olha, a pessoa indicada para dirigir isso é o professor Bento de Jesus Caraça. Vais ter com ele –  dizes que vais da minha parte – e pões-lhe esse problema.” Bento de Jesus Caraça aceitou a proposta e assumiu a direcção da colecção.»

Por sua vez Álvaro Cunhal refere: «O Avante! de Janeiro de 1944 noticiava a formação do Conselho Nacional, órgão supremo do MUNAF. O êxito deveu-se em grande parte à acção de Bento Caraça, como militante do Partido, graças à sua influência nos meios intelectuais e entre os antifascistas. Acompanhei muito de perto toda essa acção. […] O Avante! de Janeiro de 1944 confirmando a criação do MUNAF anunciava a formação do Conselho Nacional em que inicialmente entrámos, como representantes do PCP, B. Caraça e eu próprio.»

Em 1931, numa conferência realizada na Universidade Popular de Setúbal, o tema da cultura surge a partir de dois elementos da habitação da terra pelo homem o conhecimento crescente do mundo em que vive, e que torna a sua vida mais segura, e o sentimento do belo, que lhe vem da contemplação da natureza e que, introduzido nas relações sociais, dá ao homem objectivos de ordem moral.

«O aperfeiçoamento constante dos meios de satisfação e desenvolvimento destas necessidades [de cooperação], ideias [de entreajuda] e sentimentos [como os do belo], constitui a cultura, que no dizer de Karl Marx “compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem.”

«A cultura é assim simultaneamente um meio e um fim.»
Esta última frase mostra-nos que nesta altura dos anos 30, Bento de Jesus Caraça já tinha ultrapassado uma concepção instrumental da cultura. Repare-se que, para nós marxistas, a categoria de instrumento ou de instrumentalidade não deixa de ser importante porque meios e instrumentos são elementos do processo de trabalho, assim como de todo o processo de transformação. Mas de facto uma concepção ampla e profunda da cultura implica considerá-la também como um fim em si mesmo, livre jogo das forças humanas.

Daqui, Bento de Jesus Caraça, retirará a ideia de que se deve promover a cultura de todos e isso é possível porque ela não é inacessível às massas: o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável e a cultura é exactamente a condição desse aperfeiçoamento progressivo e constante:
1.1.«Dar a cada homem a consciência integral da sua própria dignidade.» «A humilhação do homem perante o homem é imoral.»

1.2.«[…] tender ao desenvolvimento do espírito de solidariedade». Ao espírito de internacionalismo na «formação da pátria humana».
1.3.A escola deve ser pública, gratuita e os que a frequentam devem ser apoiados materialmente para que não sejam obrigados a abandoná-la por falta de meios.

1.4.Renovação constante do Ensino para combater a cristalização e a burocratização.

De 1933 data a famosa conferência «A cultura integral do indivíduo». Aí, a reflexão atribui-se uma enorme responsabilidade: «O que o mundo for amanhã, é o esforço de todos nós que o determinará.»

No presente está posta à nossa geração como grande tarefa a de «despertar a alma colectiva das massas».


«O que é o homem culto? É aquele que:

«1 – Tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence;

«2 – Tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano;

«3 – Faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último da vida.»

Ser culto não é ser sábio, mas implica um certo grau de saber, aquele precisamente que fornece uma base mínima para a satisfação das três condições enunciadas.

«A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa numa palavra, a conquista da liberdade.»

Bento de Jesus Caraça não perde o pé nestas altas esferas do pensamento reflexivo, e acrescenta:  
  
«Condição indispensável para que o homem possa trilhar a senda da cultura – que ele seja economicamente independente. Consequência – o problema económico é, de todos os problemas sociais, aquele que tem de ser resolvido em primeiro lugar.»

Bento de Jesus Caraça combateu por uma concepção multifacetada da cultura, que não se restringisse à literatura e às outras artes, e incorporasse a cultura científica. Em relação ao ensino formal, nas Universidades propõe num artigo de O Diabo, intitulado «Humanismo e Humanidades»:

Haveria, então, um núcleo «comum a todas as formaturas universitárias. Esse núcleo compreenderia: I) um grupo de estudos históricos centrados na história da civilização, tomando atenção especial: à história da economia e do trabalho; à história da ciência, à história da filosofia, à história geral das artes e das religiões; II) um grupo de estudos científicos, compreendendo as bases e os conceitos fundamentais da matemática, da astronomia, da física, da química, da biologia e da economia política.

«Evidentemente, não se trataria, neste núcleo comum, de formar especialistas em nenhuma das rubricas apontadas, mas de habilitar, o que agora não sucede, todo o licenciado a saber situar-se no conjunto de ideias do seu tempo […].»

Foi graças ao trabalho desenvolvido nos anos 40 e nas décadas seguintes que foi possível escrever isto, no relatório do Comité Central ao VI Congresso do PCP, realizado em 1965, o Congresso que aprovou o Programa da Revolução Democrática e Nacional, sem o qual o 25 de Abril e o fluxo revolucionário de Abril seriam quase incompreensíveis. Foi graças a esse trabalho e ao que se lhe pôde acrescentar que o fluxo da revolução portuguesa foi um dos momentos que exibem aquela tendência de crescimento da influência do Partido na classe operária e entre os intelectuais.

«Portugal apresenta as características “originais” de ser um país dominado pelo imperialismo estrangeiro e ser um país colonialista; de ser um país atrasado, miserável e “subdesenvolvido” e um país onde as relações capitalistas de produção estão altamente desenvolvidas, inclusivamente nos campos; de ser um país com uma indústria débil e uma agricultura primitiva e onde entretanto o proletariado (industrial e rural no seu conjunto) tem um peso numérico relativo não inferior ao verificado em países industrializados e onde é muito elevado o grau de concentração do capital; um país onde existe há 39 anos uma ditadura fascista com um aparelho de Estado forte, sólido e bem organizado, que procura abafar pelo terror as mais ligeiras reclamações e protestos populares, e um país onde o movimento popular antifascista é tão amplo e profundo que aparece insistentemente à luz do dia em lutas económicas e políticas; um país onde é prosseguida uma política obscurantista, onde há quase 40 por cento de analfabetos, onde se persegue a arte e a cultura e um país onde, vencendo as barreiras fascistas, floresce um amplo movimento literário e artístico de conteúdo democrático.»

Notas
(1) In Álvaro Cunhal, Obras Escolhidas, I (1935-1947), Edições «Avante!», Lisboa, 2007, p. 400.
(2) Id., ibid., p. 383.
(3) Id., ibid., p. 400.
(4) Bento de Jesus Caraça, Conferências e Outros Escritos, s/edi., Lisboa, 1970, p. 7.
(5) Id., ibid., p. 109.
(6) In Avante!, 22 de Junho de 1995.
(7) Bento de Jesus Caraça, ob. cit., p. 6.
(8) Id., ibid., p. 8.
(9) Id., ibid., p. 8.
(10) Id., ibid., p. 8.
(11) Id., ibid., p. 9.
(12) Id., ibid., p. 33.
(13) Id., ibid., p. 53.
(14) Id., ibid., p. 51.
(15) Id., ibid., p. 51.
(16) Id., ibid., p. 51.
(17) Id., ibid., p. 282.
(18) Álvaro Cunhal, Obras Escolhidas, III (1964-1966), Edições «Avante!», Lisboa,  2010, p. 325.

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