MARIA ALDA NOGUEIRA (1923-1998)
Antifascista dotada de grande inteligência, cultura e sensibilidade, aliava a
determinação nos combates à tolerância e à abertura para ouvir, para ler e
reflectir o que quer que fosse diferente do que pensava.
Foi a primeira mulher condenada a 8 anos de prisão
maior e medidas de segurança, a mulher com mais anos seguidos numa única
prisão. Julgada em Tribunal Plenário em 1960, foi condenada a uma pena de 8
anos, seguida de “medida de segurança de internamento” de 6 meses a 3 anos,
prorrogável por tempo indeterminado. Em 1967 iniciou o cumprimento da pena de
“medidas de segurança”. E ficou em Caxias dez anos sofridos e intensos.
«Na prisão retiraram-me os melhores anos da minha
vida. Entrei com 35 anos, saí com 45 anos.» - diz numa interessante entrevista
a Helena Neves, de que deixamos aqui algumas passagens.
1. Maria Alda Barbosa Nogueira, filha de uma costureira de alfaiate e de um
serralheiro mecânico, nasceu a 19 de Março de 1923 em Alcântara. Andou na
Escola da Tapada (Alcântara) e frequentou o Liceu D. Filipa de Lencastre.
Militou no Socorro Vermelho Internacional, recolhendo géneros e roupas para os
espanhóis, e foi Presidente da Associação Escolar durante vários anos.
Aos 17 anos entrou na Faculdade de Ciências, onde veio a terminar a
licenciatura em Físico-Químicas. Foi uma aluna brilhante e iria entusiasmar-se
com a investigação. Ao mesmo tempo que participava nas lutas académicas, como
aconteceu em 1942/43 contra o aumento das propinas, Maria Alda intensificou a
intervenção social e política, nomeadamente na Associação Feminina Portuguesa
para a Paz.
Depois, chegou a exercer a docência no Ensino Secundário, durante 3 anos.
Em 1945 conhece Maria Lamas e com ela o Conselho Nacional das Mulheres
Portuguesas renasce para um período apaixonante de actividade, de
desenvolvimento. Numa entrevista que dá a Helena Neves, fala de si, da sua
vida, da luta nessa época, e do fascismo:
«O Conselho estava organizado só aqui em Lisboa e a Maria (Lamas), tal como
muitas de nós, considerava que era necessário alargá-lo a todo o país. Como eu
dava aulas mas tinha uma vida bastante disponível, fui destacada para ir ao
Algarve e lá consegui organizar várias delegações do Conselho. Tínhamos várias
actividades, entre elas, os cursos de alfabetização. Recordo-me que em Olhão
foi distribuída uma tarjeta pelas fábricas informando que no Conselho se
ensinava a ler e a escrever e o largo onde eu morava e funcionava o Conselho,
ficou pejado de mulheres, umas 200 ou 300, querendo vir às aulas. Foi um
trabalho esgotante este, mas maravilhoso. Aprendi muito com a Maria e também
ela aprendeu connosco – foi belo!» Esta é a época do amadurecimento, em que
Maria Alda se excede e se descobre nesse excesso, capaz de muito fazer e agir.
Colabora nas "Mãos de Fada", na revista "Modas &
Bordados", nas "Quatro Estações", faz conferências sobre a
mulher e a ciência. Vive. Apaixonada. Intensamente. E tal será sempre o seu
modo de estar.
É na Faculdade que entra para o Partido Comunista Português. A sua ânsia de
transformação da vida não se esgota no estudo nem nas outras actividades de
intervenção, Maria Alda sente necessidade de outros horizontes, outras formas
de luta. Arrisca. Em 1949 entra na clandestinidade e vai trabalhar na redacção
do «Avante!» Acredita, no entanto, que será por pouco tempo. O seu desejo mais
profundo é dedicar-se à investigação, procurando conciliá-la com a participação
política. Ausculta o passar do tempo e vai lendo obras científicas. Lê muito
obras científicas para não se desactualizar.
«Pensei que era uma suspensão na minha carreira, apenas isso. E lia imensas
obras da minha especialidade que pedia aos camaradas que me arranjassem.
Entretanto, uni-me ao homem que amava, tive um filho. Mas sempre aguardando o
momento em que eu retomaria a carreira. Senti sempre e sinto a nostalgia de não
seguir a vida da investigação científica.»
Na entrevista que dá a Helena Neves, não se inibe de falar da família e da vida
clandestina: «O meu primeiro amor foi uma coisa muito complicada e simultaneamente
uma coisa inesquecível. O primeiro amor... (...) A paixão viria mais tarde «e
foi uma paixão à primeira vista. Olhei-o e pensei "Se não tiver mais
ninguém, este há-de ser o meu companheiro"…» Sê-lo-ia. Durante anos. (...)
«Queríamos ter um filho. Era um desejo partilhado. Era difícil economicamente,
mas ousámos. Vivíamos privados de muita coisa mas porque, muitas vezes,
estabelecíamos residência em zonas piscatórias ou agrícolas, sempre
conseguíamos viver menos-mal. Recordo-me que numa das casas que tivemos, todos
os dias passava um pescador a dar-nos peixe fresco só porque eu lhe dera umas
calças velhas e uma camisola.»
2. Em 1957 no V Congresso do PCP é eleita membro suplente do Comité Central. Em
1959 é presa, abruptamente, e ficará presa desde Outubro de 1959 até Dezembro
de 1969.
É logo nos primeiros dias de prisão, quando incomunicável, que Alda imagina a
primeira história infantil, que termina já em liberdade e publicará em 1977: «A
viagem numa Gota de Água.» - Uma escrita que corresponde à recordação do filho
e de outras crianças atravessando a sua memória. E que corresponde também à
necessidade de sobreviver, sem desespero, à incomunicabilidade.
«Quando estávamos completamente isoladas, só tínhamos o pente, o prato, o
púcaro e pão. Nem lápis, nem papel, nem caneta. Deixaram-me ficar o bâton, que
me serviu para fazer na mesa um jogo de xadrez com bolinhas de pão. Cada pessoa
tentava enfrentar esta situação de isolamento. Eu entrei no caminho da
recriação. Trazia para a minha mente coisas que me afastassem da realidade». E
vai exercitar essa fuga indefinidamente. Nos interrogatórios. Nas horas pesadas
de solidão da cela.
«As primeiras 24 horas são as mais difíceis, depois espera-se tudo. Também nos
interrogatórios, eu imaginava como seria o Minho socialista ou esta ou outra
terra, e desligava do que eles estavam para lá a dizer. Eles apercebiam-se e
batiam com a gaveta. Isto foi uma espécie de defesa. Eu ia para outro mundo e
imaginava una história para crianças.
Quando saí da incomunicabilidade tinha a história toda escrita na minha cabeça
e uma das primeiras coisas que fiz foi passar a papel aquelas ideias, imaginei
o desenho. Isto foi o alimento intelectual para este período. Pois foi assim
que comecei a imaginar histórias… Escrevi, então, "A viagem numa Gota de
Água". Quanto à outra, "A Viagem numa Flor", quando saí da
cadeia já a tinha mais ou menos escrita, mas só depois é que a concluí.»
E na prisão, ao longo desses longos dez anos, Alda faz muitas amizades nas
companheiras.
«Estive com várias amigas durante muitos anos – a Sofia Ferreira, Ivone Dias
Lourenço, Maria da Piedade, Aida Paula, Matilde Bento, Maria Luísa Costa Dias e
tantas outras. Passámos por várias situações. Houve salas com beliches (10 ou
12 pessoas) e outras menores. Dividíamos o dia em duas partes. De manhã
levantávamo-nos e tínhamos de correr para tomar o banho quente (com o tempo
contado e só uma por casa de banho). A inspecção e a contagem eram às 8H.
Recebíamos um jornal diário – o Século – e líamos em colectivo. À volta da mesa
fazíamos os nossos trabalhos. Fiz então as camisolas todas do meu filho, saias
para a minha mãe, pegas para a cozinha, essas coisas… A Ivone fazia bonecas,
caixas e outras coisas interessantes. Elas foram-me ensinando. A visita era às
10H, em geral de meia hora. Depois trocávamos as notícias… que não eram muitas
pois a vigilância era muito grande. Almoçávamos. Repousávamos. E retomávamos o
trabalho»
«Na prisão retiraram-me os melhores anos da minha vida. Irreversivelmente. As
pessoas mudavam o carácter. Aquilo tinha tudo um efeito destruidor. As celas
mediam 4m por 4m, contando com a casa de banho. Nas salas grandes fazíamos
teatro, caricaturávamo-nos umas às outras, na brincadeira. Tínhamos direito a
meia hora de gira-discos. A mim proibiram-me de ouvir uma sinfonia porque era
tocada pela orquestra de Leninegrado. Os nossos tempos livres tinham grandes
animadoras, cantava-se o fado. E cantigas de infância até!
O tempo tem uma contagem conforme se vive mais ou menos os acontecimentos. Ao
fim de cinco anos de cadeia deixamos de ter a noção dos dias. O tempo deixa de
contar. A sensação de sair em liberdade sozinha foi horrível. Eles tinham dito
que eu saía e eu disse ao meu irmão para estar lá à minha espera. Anteciparam
24 horas e sai só, com duas malas grandes, num mundo que tinha mudado tanto. À
porta da António Maria Cardoso foi horrível, não podia com as malas. Meti-me no
eléctrico até à Rua do Ouro. Aí, meti-me num táxi e disse ao homem para me
levar a Alcântara, ao Largo do Calvário. Quando saí tinha dificuldade em andar.
Lembro-me de ir na rua com o meu filho e parecia-me ter um tapete rolante que
me levava a cair. Fez-me muita impressão ver as pessoas juntas num eléctrico,
num autocarro. Sentia as pessoas com um ar muito triste. O primeiro filme que
fui ver o "Romeu e Julieta". Quando veio o intervalo e vi todas as
pessoas juntas, fiquei agoniada e vomitei o jantar todo e tive de me vir
embora.
A vertigem dos espaços abertos. Sem grades. E o roçar da gente que vai ao nosso
lado ou atrás de nós e passa à frente, e não é, afinal, um inimigo, como
temíamos no coração feito pássaro de susto. Mas pode ser também a inocência no
rosto apenas máscara, disfarce, armadilha. A maior partida não foi o amor que
ma pregou, mas sim o fascismo. Se um homem andava atrás de mim, pensava logo
que era PIDE.»
Em liberdade condicional, mas constantemente vigiada e perseguida, Alda
Nogueira voltou à militância, e encontrava-se na Bélgica com o estatuto de
refugiada política aquando do 25 de Abril de 1974.
3. Depois do 25 de Abril foi também no combate pela libertação da mulher que se
moveu – e fez mover outras mulheres – com paixão e empenhamento constantes.
Colaborou no Suplemento "A Mulher" do Diário.
Publicou os livros infantis escritos ou imaginados na prisão: "Viagem numa
Gota de Água" e "Viagem numa Flor" e "As coisas também se
zangam".
«Considero-me feliz e realizada, embora haja lacunas. Há aspectos em que fui
defraudada, mas quem não foi, quem de nós que vivemos a maior parte da nossa
vida sob o fascismo? Como mãe, o meu filho compensa-me do que eu sonharia. Como
mulher, guarda recordações inesquecíveis. Descobri coisas que nem sequer
pensava ser possível descobrir. Trabalhei e conheci pessoas extraordinárias.
Penso que só numa sociedade em que todos tenham acesso a tudo, a mulher poderá
acabar com as discriminações. É um processo lento e não compensatório. Há
problemas que não vão estar resolvidos tão cedo. Estou metida neste processo,
não verei o seu fim, mas a minha preocupação é dar a conhecer às jovens de
hoje, o que as mulheres fizeram. E tanto que foi!»
4. Foi deputada à Assembleia Constituinte de 1975 e eleita para a Assembleia da
República em 1976, onde permaneceu até 1986.
Membro do C.C. do PCP e deputada de 1975 a 1985. Presidente da Comissão Parlamentar
da Condição Feminina de 1983 a 1985, Maria Alda Nogueira permaneceu activa,
interveniente, inquieta.
Para além de ter exercido o cargo de Vice-Presidente do Grupo Parlamentar do
PCP durante 12 anos, integrou também várias comissões parlamentares.
Em 1988 foi condecorada com a Ordem da Liberdade pelo Presidente da República.
Em 1987 recebeu a Distinção de Honra do Movimento Democrático de Mulheres.
Faleceu em 5 de Março de 1998. Entre as numerosas personalidades que estiveram
presentes nas cerimónias fúnebres, no cemitério do Alto de S. João,
encontrava-se o Presidente da República, Jorge Sampaio.
Helena Pato
Biografia escrita a partir de uma entrevista dada a Helena Neves
- http://ocastendo.blogs.sapo.pt/2008/03/
- http://www.parlamento.pt/VisitaParlamento/Paginas/BiogAldaNogueira.aspx
- http://silenciosememorias.blogspot.pt/2015/03/0946-alda-nogueira-i.html
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